Malcolm Diva X
inuómePaifioespírioSantamém.
Água na ponta dos dedos, indicador médio anelar; mindinho nunca se molha, não alcança; o polegar, demasiado prepotente para se deixar banhar, benzer. O ritual, sempre o mesmo na piscina: três dedos batizados na superfície, deus e cruz solicitados, calafrio.
— Piscina tá gelaaada, deus Credo!
— Gelada nada, Malcolm. Deixa de ser fresco, cai dentro ou te empurro e aí, ah, moleque, aííí
E aí? Aí nada. Me olhando com essas caras, pensam que não sei. Cheguei aqui, mérito meu. Meu, estão ouvindo? A alemã. Ah, alemã. Entendo nada do que fala, lá vou eu saber ouvir alemão? Só sei que de mim não fala, nunca fala, fala da água, só da água. Clóvis já me disse: “Foda é a alemã, pode botar homem, mulher na água, cobra, lagarto, golfinho, que a Gert ganha. Ganha até de piranha”. Clóvis ria, risada que só ele tem no mundo todo. Raridade, não dava pra ficar gastando assim, sem mais nem menos. Por isso, Clóvis ri pouco.
Essazinhas aqui é que riem de monte, umas risadas todas iguais, barulhinhos de tranqueirinha de lojinha de um real, quinquinzinha de camelô, esses debochinhos, tudo igualzinho. Ficam rindo pra mim. De mim. A alemã não ri, sei nem se respira, olha pra água. Só. Bate num braço, bate no outro, não deixa o sangue dormir na artéria, tá frio, água tá fria. A inimiga dela tá na água, água tá fria que dói. Eu não me aguento. Rindo de quê, francesinha?! De nervoso, é? Ela gargalha lá umas palavras lá dos franceses, também entendo nada, mas sei. Sei o que é. Meu pai sabia o que era. Larga a mão de ser ridículo, moleque do caralho, que história é essa?, nasceu no corpo errado o quê?!, não se leva a sério?, não se leva a sério ninguém vai levar, ninguém, seu moleque filha da puta.
Minha mãe não levou a sério. Meus irmãos, nem. Só Maria, a das Dores, não a dos Prazeres, quis ouvir. Ouviu, e só. Não precisou aceitar, nunca precisei que aceitassem. Só que ouvissem. Na escola nunca ouviram, ainda mais naquela idade, só se fala, só se uiva. Olha lá, mais uma Maria na família, achei que eram só duas, essa é qual? das Dores? dos Prazeres?, não, é a Transformista, Maria Transformista. As risadas, todas iguaizinhas. Ruidinho de plástico vagabundo, que racha fácil, 400 anos pra terra absorver. 400 anos dessas risadinhas de plástico, de quem tem o que eu não tenho ou que não tem o que tenho. Meu pai queria que Malcolm fosse de plástico também, imortal, que durasse 400 anos, queria um Malcolm X em casa, teu nome é por causa dele, Malcolm, respeite isso, cara que não fermentava desaforo, fosse com ele ou com a gente dele, a nossa gente, Malcolm. Ouviu? Malcolm não durou nem 14 anos pro meu pai. Sei nem se durou 14 dias pra mim.
— Maldiva, esquece elas, pô! Veio aqui pra ganhar ou pra chorar? Deixa de frescura, aí.
O Clóvis eu não entendo, mas sei o que diria. Não está aqui, não aqui do meu lado, em área de competição técnico não entra, não pode. Mas está aqui, em algum lugar aqui. Arquibancada talvez, já olhei duas, três vezes, não quero olhar de novo. A arquibancada. Está lá o X que meu pai queria. Não do jeito que queria. Mas está lá. Maldiva X. O X em cima do meu nome. Meu nome. Não do lado, que era o que meu pai queria. Mas está lá, nos cartazes, já contei nove, Maldiva X, MaXldiva, MaldXiva, Brazil X, BraXzil, BrazXil, MaldivaXBrazil. Eu sou eu, sou meu país, embora meu país não concorde, Uma vergonha em escala global, Brasil decreta o fim de um esporte, Da linguagem neutra para a piscina neutra, A covardia na guerra dos sexos, as manchetes, matérias, os rancores, os ódios. Meu país não sou eu, não quer que eu seja eu.
— Deixa falarem, Maldiva. Gente é tudo previsível assim. Imprevisível é a água. De gente você sabe o que esperar. Da água, não.
Clóvis não sorri faz meses. Não sorriu quando a Federação me liberou para o Mundial. Não sorriu quando me qualifiquei. Não sorriu quando a húngara foi desclassificada, boca maior que a braçada, me amaldiçoando, de húngaro entendo nada, mas o que ela disse não era festa, não. Não sorriu quando a alemã disse que não comentaria sobre o assunto, só me interessa o que acontece debaixo d’água, dizia a legenda porque de alemão eu não entendo, já disse. Não sorriu, nem de ironia, quando meu pai perguntou se natação dava dinheiro, depois de três anos sem falar comigo — a resposta do Clóvis renovou o sumiço por mais trezentos anos. Quando o plástico degradar, meu pai reaparece. Ou menos, se a natação der dinheiro.
A última vez que sorriu — ou chorou, entendo nada das caretas que o Clóvis às vezes faz — foi quando eu o chamei de pai quando minha cabeça queria dizer treinador. Ou vice-versa.
Isso já tem uns meses.
O alto-falante manda as nadadoras, a gente, se alinharem. Ou algo assim, entendo nada do inglês metálico, mas sei o que o som quer dizer. A mexicana do meu lado, justo a mexicana, Mercedes, que já me xingou de cabrón pra baixo, essa eu entendo tudo, quase tudo. Rindo aqui, do meu lado, voz de radinho chiado, sabe que tou ouvindo, ouvindo ela e as outras duas do lado dela, esses sorrisinhos, um bando de quero-quero, ai, Maria, virgemaria, amaldiçoa. A arquibancada. Ri junto, xinga junto, entendo nada os desaforos que Malcolm, o X, não levaria para casa, para a gente dele, para nossa gente. Maldiva leva, Maldiva não tem a gente dela, minha gente. Amaldiçoa, Maria.
Ajeito o maiô, enverga isso aí como uma segunda pele, o Clóvis diz, como roupa de gala, menina, quebrou muita noite e muita água pra que não te botassem sunga. Delicada, uma alça, depois a outra. Minha pele. Minha pele no cloro, quero só o cheiro do cloro, pra apagar tudo: ecos, sussurros, apagar os fuck-u — esses eu entendo, quem não? Quero o cloro estéril, a água imprevisível, o Clóvis aqui.
Subo no bloco de partida, já foi o primeiro sinal pra gente se aprontar para a saída, o apito longo. A gente? Elas e eu. Eu.
A suas marcas, posição de partida, respiro, seguro o choro, o choro, não chora, não se mexa, fique imóvel, não vá ser desclassificado, préstenção, desclassificada por bobagem.
Cabrón de mierda, Mercedes mais alto que um sussuro, mais alto que o tiro de partida. Elas mergulham. Eu caio. Eu choro. Eu, cloro. Clóvis, Clóvis?
Vai vai vai vai vai, Clóvis, braçada, pernas, imprevisível é a água, não para, Maldiva. Não para.
Eu choro enquanto respiro enquanto nado enquanto braço enquanto perno enquanto choro. Enquanto vivo. Viva, Maldiva. Nada, Maldiva. Só nada, Maldiva. Porra, Clóvis. Uma braçada para cada duas pernadas, não dobra os joelhos, vai vai, engulo água, amadora, vai, duas braçadas para cada quatro pernadas, joelhos retos dentro da água, duas braçadas para cada seis, vai vai vai vai vai. Enquanto vivo. As pernas da mexicana, do meu lado, na minha frente, cabrona de merda, sou a última, australiana já inverteu, meu outro lado, Clóvis tô muito atrás. Vai vai vai vai vai.
Inverto, mexicana ficou, inverteu errado, Maria amaldiçoa. Trouxa. Volta os pés pra água, duas braçadas, seis pernadas, respira, respira, não chora, solta o ar, volta, braçadas, três pernadas, australiana na frente, vai Maldiva cacete, rema isso aí, braçada, braçada, solta o ar, puxa o ar, solta, pernada. Sai, australiana. Espirrando muita água, endireita isso aí, vai vai vai vai vai. Australiana tá ficando, braçada, pernada pernada pernada, braçada, pernada pernada pernada. Australiana ficou. Tenciona o músculo, Maldiva, vai que tá no final, menina, não para, não para, não para. Hora de botar tudo nessas pernas, porra. Malcolm ficou. Vai vai vai vai vai.
Foi. Bati. O ar, o ar, cadê o ar? Respira. Obrigado, Maria. Respiro. Mexicana bateu. Terminou. Não, não terminou, nunca vai terminar, cabrona de merda. Maria, obrigado. Australiana esmurra a água, todas de olho no placar, elas e eu. Esperando, respiro. Obrigado, obrigado, virgemaria, eu choro, só choro, ai, miavirge, obrigado. Engulo água, cuspo água, tusso água.
Eu.
Um braço me agarra pelo pescoço.
A alemã. Entendo nada. Me abraça, braços e água, cloro e alemão, língua dos diabos, que não deixa respirar quem ouve. Entendo tudo.
Eu choro. No ombro da alemã. Choro irritado de cloro. Choro irritado de gente. Gert me abraça mais forte ainda.
Chora, em alemão. As bruacas entendem tudo. Mexicana, francesa, australiana, chinesa, marciana, brasileiros.
Clóvis sorri. Ou chora, da arquibancada.
Entendo nada da cara dele. Faz meses que não sorri.
Sobre as obras
O conto Malcon Diva X foi premiado no XV Concurso Nacional de Contos – Prêmio “Ignácio de Loyola Brandão” e publicado em coletânea com 250 exemplares, pela Secretaria de Cultura de Araraquara e pela Fundart.
História conhecida, um clichê até: Cássio Goné é jornalista e publicitário, sócio de uma pequena e honesta agência de marketing, porque escritor não dava pé. De meia. Continua não dando. E, para engrossar o lugar-comum, voltou a acreditar, pronto a arriscar. Está começando pela cabeça, até que encontre os pés. É autor de Malcolm Diva X, conto premiado pelo Prêmio Ignácio de Loyola Brandão.
@gomenevez