Rosa
Sentada em uma lanchonete, Rosa almoçava o sanduíche que trouxera de casa com um suco comprado no local. Sempre fazia isso no intervalo do trabalho pois gostava da vista: havia um parque do outro lado da rua que em tardes de sol enchia-se de crianças que buscavam aproveitar o calor para brincadeiras infantis. Também velhinhos se sentavam nos bancos distribuídos pelo local, conversando animadamente. Fazia com que ela voltasse ao trabalho com uma imagem bonita na cabeça.
No entanto, naquele dia algo atrapalhava seu momento de descanso. Contrastando com a cena bucólica que presenciava usualmente, uma figura estranha passeava pelo local. Suas vestes, pesadas, nada tinham a ver com a tarde ensolarada que fazia – usava uma espécie de casaco largo, cujas mangas estendiam-se quase na extensão das mãos, das quais só se podia ver as pontas dos dedos, uma calça jeans larga, aparentemente gasta pelo tempo, e um tênis velho. Sob alguns aspectos não seria diferente dos pedintes que ocasionalmente passavam pela praça, se não fosse pelo detalhe mais estranho: sua face era totalmente coberta por uma máscara branca, que parecia feita de gesso. A máscara emulava um rosto, com relevos côncavos onde deveria haver olhos e bocas, mas não tinha efetivamente orifícios para estes e, portanto, Rosa se perguntava como era possível que estivesse sequer vendo algo. Aparentemente despreocupada, aquela pessoa passeava pelo parque, brincando com os cachorros de rua que dormiam nas sombras das árvores ou deitado na grama, ao sol.
A cena incomodava Rosa. No seu horário de almoço, não desejava nada que a tirasse do objetivo de descansar a cabeça com uma cena calma para que pudesse retornar ao trabalho pronta para o resto da jornada. Ao mesmo tempo, não conseguia evitar de se sentir atraída por aquela cena peculiar. Rosa pensou, pelo porte do corpo, que deveria ser um homem, mas era impossível dizer com certeza naqueles trajes. Ainda observava distraída quando em um movimento ocasional de cabeça o mascarado encontrou o olhar de Rosa. Ele parou imediatamente o movimento que fazia, com o rosto em sua direção como se vasculhasse seu pensamento. A cena durou um breve momento até ela desviar o olhar, sentindo-se envergonhada com aquele foco que sentia sobre si e que rompia a tela do filme que assistia passivamente, colocando-a em evidência e a desconcertando. Sentindo, no entanto, um impulso inevitável de continuar observando, instigada, como ocorre a certas pessoas ao passar por um acidente, em que se quer romper a interação mas não se consegue evitar o olhar, voltou a espiar. O mascarado, que ainda a olhava, esticou a mão, como se fizesse menção de pegar a sua. O gesto não fazia sentido, já que ela estava a muitos metros de distância. “Sua conta, senhorita”, disse o garçom. Ela se virou abruptamente, tendo esquecido totalmente que havia pedido a conta, e retirou o cartão para pagá-la, se preparando para retornar ao trabalho. Voltou os olhos para o parque e não o encontrou mais. “Aposto que não trabalha. Se eu não presto atenção é capaz de me roubar a carteira”, pensou ela, tentando de alguma forma dar um ar ordinário ao que acabara de ocorrer.
Voltando ao escritório, encontrou o mesmo trabalho de sempre, em uma empresa de seguros. Ao sentar-se em seu pequeno cubículo dentro da imensidão de cubículos da empresa, olhou o porta-retratos que ficava à esquerda do seu computador. Era uma foto de quando fora premiada como funcionária padrão, um prêmio anual da empresa. Guardava aquela imagem como prova de sua capacidade – quase nunca faltava ao trabalho, fazia horas extras sempre que necessário e esse reconhecimento era, a seu ver, um retorno pelos seus méritos. Não dava importância aos demais colegas da foto, que também recebiam o prêmio – apesar de também participarem da cerimônia, não se comparavam ao que ela havia entregado naquele ano. Pensava até que provavelmente a invejavam por isso. Nunca gostara muito deles, também.
Continuou em seu trabalho até de noite, para depois pegar o ônibus e voltar para casa. Chegando em sua residência, comeu o jantar esquentado no micro-ondas vendo algum programa qualquer na TV, que utilizava mais para fazer barulho do que propriamente para assistir, enquanto digitava em seu celular vendo sites de notícias ou revirando perfis de amigos antigos na rede social. Quando se cansou, lavou a louça, fez o sanduíche para o dia seguinte, embalou-o e guardou em sua bolsa. Escovou os dentes, tomou banho e se deitou. Sentiu que fazia isso mais para passar logo esse momento e voltar a resolver os problemas do trabalho que ainda a aborreciam. Como por obrigação, a escuridão lentamente se apossou de sua cabeça quando se estirou na cama, e dormiu quase em torpor, sem sonhar.
...
Chegou novamente no trabalho no horário pontual, deu as usuais saudações aos que trabalhavam nos arredores de seu cubículo, e retomou tudo onde havia deixado no dia anterior. No horário de sempre estava novamente na lanchonete, e lá estava, de novo, para sua surpresa, a estranha figura. Rosa fingiu não o ver, correndo com os olhos para outros elementos da paisagem.
A cena do dia anterior voltou à sua cabeça e a fez refletir: por que ele havia oferecido a mão? Será que a tomava por uma pessoa desesperada, que levantaria do seu assento para passear com um desconhecido? Além disso, Rosa era uma pessoa ocupada, não tinha tempo para passeios à toa no parque.
Relembrar o dia anterior trouxe de volta a curiosidade, e ela voltou a procurá-lo com os olhos. No entanto, ele já não estava na posição onde o vira anteriormente. Decepcionada, mas um pouco feliz em voltar à normalidade da cena dos velhinhos no parque, Rosa fez o movimento de voltar para seu sanduíche, mas surpreendeu-se imediatamente, ao virar o rosto na direção de sua mesa, com a presença do mascarado a poucos metros de si, acenando para ela. “Ah!” – gritou, e arrastou fortemente a cadeira para trás, quase caindo. Todos no restaurante viraram-se, o que deixou Rosa extremamente desconfortável. Ela ia chamar a segurança, mas antes que fizesse menção a qualquer coisa, ele se retirou correndo, não sem antes fazer um movimento das mãos deixando algo em cima da mesa.
Ela retornou a sua cadeira para perto da mesa, dando alguns olhares envergonhados a todos que a observavam, e fingiu não ouvir os murmurinhos a seu redor sobre o assunto. “O que os outros vão pensar, se acharem que sou conhecida de uma pessoa tão estranha” – pensou, enquanto engolia seu sanduíche para sair o quanto antes dali. Buscando na mesa o que o mascarado havia deixado, percebeu que era um punhado de grama, provavelmente tirada do parque. Teve ainda mais certeza que se tratava de um louco, mas de todo jeito guardou a grama na bolsa.
Voltou para o trabalho. Ocasionalmente pensava naquela grama, que certamente ainda estava verde como as do parque, sentindo-a de certa forma. Por um tempo, pensou sorrir, lembrando-se da história que agora achava engraçada, mas logo desfez a feição de seu rosto – alguém poderia passar e o que acharia ao vê-la rindo sozinha? Ligou seu monitor e voltou aos cálculos atuariais. Conversas sem conteúdo brotavam pelos cantos, as quais Rosa só ouvia rapidamente, sem se importar muito. Os dedos teclando, cochichos se entrelaçando, canetas tocando mesas, todos entrando em harmonia pareciam uma sinfonia hipnótica para o ritmo de trabalho. Ela começou a trabalhar, e os números foram se calculando, o tempo foi passando até que a sinfonia foi diminuindo, diminuindo, e já era tarde quando seu chefe veio a abordar:
— Como vai minha funcionária favorita? – disse, forçando um tom de bom humor na voz.
— Bem… – respondeu, com um sorriso forçado de cortesia, e já sabia que o chefe ia pedir alguma coisa.
Uma negociação ia mal com um cliente, uma filial local de um banco internacional. Era necessário revisar a proposta, pois eles estavam em desacordo com os termos, e foi sem surpresa que toda a explicação do chefe terminou em:
— Você pode ficar hoje até um pouco mais tarde e dar uma olhada de novo na nossa proposta?
Rosa olhou-o, sem muita emoção: estava acostumada aos apelos do chefe para ficar mais tempo no trabalho. Em parte, esse tipo de coisa que havia lhe garantido o seu prêmio. Deu uma olhada de relance a seu porta-retratos, agora irritada com aquele reconhecimento que tinha gosto amargo. Tornou a olhar o chefe, seu porte tinha algo de nobre e seus cabelos grisalhos davam-lhe um olhar de sabedoria. Não era um mal chefe, pensava, mas vivia dando seus serviços a outros funcionários, como fazia agora com ela. Suspirou profundamente: mesmo se fosse para casa, também não teria muito o que fazer. Com a voz mais agradável que pudera fazer, disse-lhe que faria o serviço. Ele olhou-a satisfeito e provavelmente disse algo, que ela não ouvira pois havia voltado a seu trabalho anterior.
...
Já era tarde da noite e só sobrava ela no escritório, além dos seguranças que vinham fazer as rondas ocasionalmente. O silêncio era quase total, sendo cortado pelo tímido barulho de suas mãos pressionando o teclado. Seu cansaço já estava insuportável, sentiu que precisava parar e se lembrou do punhado de grama na sua bolsa. Ali, sem ninguém, não a achariam louca. Pegou e as poucas gramas já estavam amassadas, algumas partidas ao meio, mas ainda faziam Rosa lembrar-se do parque. O teclado entrou em descanso de tela e ela ouviu ao seu lado “É uma bela vista, essa, não?”. Virou-se assustada e viu um homem velho, que no seu íntimo de alguma forma sabia ser o mascarado do parque. Tornou a olhar em frente e o chão estava tomado por uma grama nova, verde brilhosa, que reluzia o sol da tarde, espalhava-se como um tapete verde. “Sim, é uma bela vista”, respondeu, e sentiu um suave vento acariciar seu rosto. Por um momento, sentiu um ânimo que a lembrava da época da infância. Levantou e correu sem destino pelo espaço, até ofegante deitar na grama, sentindo o sol e sorrindo largamente, um sorriso que parecia ter em seu poder o infinito…
Um pensamento, no entanto, foi se apossando de sua mente e a alegria deu lugar à ânsia. “Preciso checar os cálculos!”, pensou, e em um gesto brusco Rosa despertou do sono. Acordou e, olhando ao redor, percebeu que já amanhecia. Havia passado a noite no escritório. Jogou a grama, que ainda segurava em sua mão direita, no lixo e limpou o rosto com a mão, indo depois até o banheiro. Alguns dos funcionários da empresa chegariam em breve e queria parecer bem. Voltou ao trabalho e a sinfonia voltou, em seu ritmo hipnótico. Entregou a revisão do relatório para o chefe, que recebeu Rosa com muito entusiasmo.
Desde que acordara no escritório sentia-se mal, um sentimento de agonia que não conseguia entender. Quando a hora do almoço chegou, ela deu graças a Deus que tivesse algum tempo para respirar fora dali.
No mesmo lugar de sempre, olhou o velho parque, que para sua surpresa voltou a ser o parque a que estava acostumada, sem sinal do estranho mascarado. Lembrou-se de seu sonho. Sempre pensava em passear algum dia ali, como as pessoas que assistia em todos os almoços, mas nunca havia tempo! Nunca havia parado para pensar nisso, mas que destino cruel reservava a vida para ela! Trabalhar e esperar tanto tempo para poder se fazer o que se quer, e só descansar quando já não se pode mais fazer tantas coisas… e tantas coisas ela queria fazer. O almoço passou rápido e logo já estava de volta ao trabalho.
Talvez fosse o cansaço, talvez fosse o sonho que teve, mas Rosa sentia que algo se mexia nela. Ao mesmo tempo, sentia que cada tecla pressionada, cada conversa de corredor, cada caneta batendo na mesa, parecia tão insuportável que a deixava paralisada. Naquele dia pediu a seu chefe para ser liberada mais cedo.
— Ora, mas a minha funcionária favorita quer sair mais cedo? É a primeira vez desde que eu vim para a seção – disse ele, em um tom de brincadeira que Rosa sabia ser falso para ocultar a cobrança pelo pedido que ela fazia.
— Sim, estou passando mal. – explicou, sem emoção na voz, que saía seca ao ponto de ser quase grosseira. Tentou amenizar com um sorriso, mas o corpo não respondeu e ela desistiu.
— Bem, acho que está tudo bem, já que ontem você ficou umas horinhas a mais. – disse o chefe, ainda com o tom falso de brincadeira.
Ao ouvir isso, Rosa fez um aceno com a cabeça, se virou e abriu a porta para sair. Antes de ir embora, pegou o porta-retratos e passou um tempo olhando-o, pensativa. Jogou-o no lixo e foi embora.
Em casa, repetiu o mesmo ritual de sempre, mas antes de dormir abriu uma gaveta na cômoda que ficava ao lado de sua cama e que servia de apoio para seu despertador. Retirou, debaixo de muitos papéis, um empoeirado caderno de partituras, de folhas gastas. Olhou as anotações antigas que fizera no caderno: se lembrava que, jovem, tocava bem piano. “Eu pensava até em ser pianista, olha só”, disse para si mesma, animada. Deitou-se e começou a reler as partituras sob a luz do abajur que ficava ao lado da cama, imaginando em sua cabeça a harmonia no piano, quando ouviu um barulho de multidão. Virou-se e havia um grande público ao seu redor. Começou a passar seus frágeis dedos pelas teclas do piano, desenhando no ar uma música que soava lindamente. Seu contentamento consigo a fez fechar os olhos, e ainda assim sentia que não erraria nenhuma nota. Ao terminar, ouviu os aplausos. Ainda agradecia ao público quando as luzes se intensificaram de repente, com tanta força que ela protegeu o rosto. Um barulho estridente fez seus olhos abrirem, o despertador tocava e era manhã.
Naquele dia, novamente o mascarado não estava lá, e Rosa percebeu que sentia sua falta. Sua ausência fazia, de certa forma, com que ela perdesse o extraordinário que a envolvera desde aquele dia em que ele lhe estendera a mão. Rosa voltou ao trabalho e sentiu que ainda esperaria mais anos para ir ao parque. Faria hora extra no dia, já que seu chefe havia acabado de a convencer da necessidade de cobrir as horas faltadas no dia anterior.
Talvez mesmo por acreditar desde o começo que não havia lógica em tudo que vivera é que o sentimento de Rosa, ao encontrar o mascarado à sua frente ao sair do prédio, já com poucas pessoas à vista, não foi de surpresa, e sim de alegria. Era como se visse um amigo de longa data. Ele estendeu a mão, e ela deixou-se guiar.
Foram a um local vazio e ele tirou do bolso da calça uma flor vermelha, colocando-a nos cabelos de Rosa e contemplando-a. Ela sorriu. As mãos dos dois se encontraram, se entrelaçando, e seus rostos se encaravam. Aquela máscara de gesso, mesmo sem ser capaz de demonstrar nenhuma emoção, parecia para Rosa conter todas as emoções do mundo. Uma lágrima escorreu pela face dela e, ao tocar o chão, mais milhares de outras lágrimas começaram a cair. Rosa fechou os olhos, aproximou-se do mascarado e seus lábios tocaram-se enquanto o gesso se desfazia com a água da chuva que inundava a cidade, em um beijo que pode ter durado dias, meses.
Ao término do beijo, quando voltou a abrir os olhos, Rosa estava sozinha e entendia tudo. Olhou para o alto, estendeu os braços e, em um riso inabalável, deixou-se molhar andando sem rumo pela cidade naquela noite.
Tiago Amaro é um carioca de 37 anos que escreve com o pseudônimo de Carlos Antunes no blog Aventuras contra o Tédio (aventurascontraotedio.wordpress.com) e no site Trema. Já publicou na revista LiteraLivre e no site EntreContos.
@talps050