treliças
Mais uma vez era véspera de Natal e mais uma vez, olhava através das treliças velhas, esperando uma estrela... A mesma de sua infância, já passada. A abertura era poeirenta e o céu indeciso. Nem sol, nem chuva, nem nuvens inteiras... Apenas borrões clareados pelo dia e o pó da madeira carcomida, que derramava, granulado e luminoso. Quase como açúcar, em tom mascavo, acumulando-se, diuturnamente, em ambos os lados daquele parapeito rachado, ou seria um simples guarda-copo? Cabiam seu corpo e a xícara de boa louça, feita para durar. Janela imensa, antiga, usada, troncha, entrelaçada de cedro. Apodrecendo!
Gostava dela, era bom que fosse gasta. Fazia lembrar anos atrás. Sempre vira beleza no manchado, manuseado... Um certo sebo invisível, advindo das habilidades manuais daqueles que já haviam passado, porém, permaneciam lá em cada mancha, maculando a casa. Era consciente de que, sentir assim, fazia com que acumulasse bagagens pesadas e úmidas em si. Seu próprio coração, às vezes, parecia carunchado... Embolorado. E, não havia muita saída: restava-lhe ensolarar, para secar, ao menos. O banho de sol acontecia das quinze para às sete, às dez da manhã. Sem muita pontualidade, nem muita prontidão. Entretanto, constante.
Encostava-se e ficava... Minutos a fio. Até a sombra inverter o lado. Bebia café: ralo, requentado. Sim, insosso. Não importava, era só pelo gosto de descobrir desenhos no fundo da xícara: o liquido ia e vinha, conforme o agitava... Ou não. Com os anos, adquirira uma aparente paciência. Consumia com as horas, devagar, doído. Manietando, manufaturando o tempo, furando-o com um arco-de-pua e admirando, com prazer, o pequeno orifício redondo da própria existência.
Não tinha, ainda, um corpo realmente envelhecido. Só acabara de descobrir seu declínio. Não é muito óbvia a consciência física de que se vai morrer. Por isso, quando surge, enrugamo-nos e, pouco importa que ainda não tenhamos chegado ao meio da vida. Envelhece, com alguma violência. Não é madeira, é pele! Proteína, essencialmente, podre.
Às vezes, ameaçava revoltar-se. Num impulso traseiro, agarrava-se ao alpendre. Ficava com os pés suspensos, como quando era criança e balançava-os com força, agitando junto, o café fraco. Já sabia que toda a revolta era vaidosa, mimada, pedante. Então, revolvia-se, para dissolvê-la. Ora, também era feita de pó. Mas, não parecia açúcar, não era doce. Só dissolvia, silenciosa e viva! Isso é que era, então: treliçada. Repleta de reentrâncias, senões, sezões...
Vaidosa, sim. Vã, de uma grande vacuidade, mas, bem clara, discreta, iluminada e, por isso, quase perdoável. Vivia dias tristes, contudo, eram honestos, alguns dos mais sinceros que já vivera. Pela primeira vez, em muito tempo, estava sozinha sem justificativas, não tentava mais justificar e amenizar o vazio coberto de poeira e luz que a preenchia. Simplesmente, olhava a janela condenada pelo uso... E admitia. Só aquiescia, abanando a cabeça, como alguém que não quer mais discutir consigo, nem com os outros. Agora, quando questionada ela sorria devagar, assoprando. E, qualquer que fosse a pergunta a resposta era: “Sim”
Não aquele de quem é cordial e aceita, mas, de alguém que cansa. Sentia a fadiga de ser feito um ranço rangendo, junto das dobradiças, malmente sustentando as ventanas. Remontavam o pó, os cupins e a culpa (que já não podia ser de mais ninguém). Ora, se não havia responsabilidade, era inútil desculpar-se... Bastava seguir... Ou, mais fácil ainda, ir lá fora... Varrer o quintal, recolher as frutas podres, misturá-las às folhas secas, atear fogo e sentir o cheiro característico do vegetal sem nenhuma química sendo queimado; odor natural de decomposição acelerada, frutada e acre! Experimentar desses vínculos sem nenhum acúmulo, de tudo aquilo que nasce só para morrer, mesmo. Organismos singelos, sãos, que somente são. Limões miúdos, de pouco suco e pouco sumo, nascidos à revelia... Um formigueiro torto aerando e escurecendo a terra... Uma touceira de capim ordinário, que lhe disseram servir para espantar pernilongos (como se já não fosse pouca a vida que tinha ali) e a cadela, dormindo imóvel, de focinho enterrado no chão.
Só o que tinha no horizonte partido pelos losangos frouxos da tela. Este, inegavelmente, era mais digno e corajoso lá do lado de fora. Exatamente, porque, só era. Deixava-se que fosse, sem nenhum exame de consciência! Sem prévias, pormenores, nada de anamneses anímicas... Só amanhecer, anoitecer, findar. ... Gozando do conforto franco que ela mesma, jamais sentiu. Da paz que nunca quis, embora dissesse que sim... Tinha afeto. Só que não era afeto pacífico, estava diariamente sob pressão e nem mesmo a pressão, permitia-se ser. Por isso, enchia-se de maus presságios pressurizados e silenciava por fora, numa ansiedade infantil de amar.
Ansiedade de separação adulta, foi o que disseram. Decorria, ainda, das separações em criança... Nominada ou não, ela era sempre a mesma e, piorava próximo aos natais solitários que optara por viver: um misto de solidão melindrada, carência, pudor e perda.... Uma vaga covardia alojada à altura do estômago... Enjoo pudico e refluxo de rubor. Há tanto tempo, com tantas pessoas, tão inutilmente tímida, em seu observatório de orgulho mal engolido. Não se queria mais, não assim. Aquelas ripas eram ásperas, farpadas! Raspavam-na, por dentro, à despeito de toda a lisura e do verniz velho.... Empobreciam-na, brocavam, acabavam com seus brios e, há muito, já não eram abrigo.
Bastava que empurrasse, assim, de dentro para fora, a porção enegrecida e podre, cederia, enquanto o restante do quadrilátero, cairia... Subitamente, como se a janela houvesse desmaiado. Entretanto, não desejava a leveza, nem toda aquela surdez e sobriedade de gestos. Arregaçou com as duas mãos as tiras trançadas que estavam no centro, à altura das suas sobrancelhas. Elas se abriram elásticas, daquela elasticidade meio mole, comum às madeiras que o tempo umedece... e, de repente, fez da cena mais ridícula, descomplicada e humana: ao ruir, as treliças resvalaram na louça da caneca, trincando-a, sem quebrar. Na tentativa de salvaguardar o famigerado utensílio, arqueou; ... e metade do corpo emborcou no buraco aberto.
A cena não era bonita, nem alegre, nem triste... Não tinha o bom gosto natalino. Sem traços de drama, ou comédia. Desapaixonada e patética, a meia cara revelava-se: só queria segurar o restante do corpo e não escorregar, por isso, contorcia-se e apenas uma das faces era visível, contraída. Na mão pendente, a alça de louça trincada, à guisa de um anel extravagante. Todavia, contrariando todo aquele contorcionismo, a anedonia presente era inédita; simplesmente uma placidez pachorrenta e um pouco de sono. Nada além de sonolência de pouca importância. Semelhante à da cadela, o animal acabara de acordar e esticava lentamente as patas dianteiras.
Tratava-se de um cão que era inteiro quase: mais um pouquinho e teria raça definida... Por um triz, se conseguiria definir a sua cor predominante entre os tons fulvos, marrons e brancos... Um colorido descorado, a cabeça pintalgada, cheia de manchas disformes. Quase, enfim... Um triz, uma nesga... Feito os décimos faltantes que um aluno reprovado implora ao professor. Porém, não era um ser importante, não era consciente, nem conhecido por muitos... Não sabia comemorar o nascimento de Cristo, nem de quem quer que fosse.
Estava lá, somente, com sua sinceridade constrangedora. Aliás, as duas estavam, sós, entre o limoeiro sofrível e as formigas pequeninas.
Aproximaram-se (afinal, era véspera de Natal) e a cachorra compreendeu, antes. (coisas há que os cachorros compreendem antes. São mais rápidos e melhores, inclusive.) Contudo, ao andar ela não era ágil, as ancas deformadas e magras descadeiravam-na, nuns passos viciados e claudicantes... O rabo, por sua vez, arrastava, entre rendido e animado... Festejaria, caso soubesse fazê-lo.
Mais perto, podia-se ver... Desconjuntara, mas a causa não era interna. Havia um espinho, proeminente, no lado esquerdo. Possivelmente, oriundo dos galhos com limões, sob os quais, pernoitava. Enxergando-o, a humana da relação, sentiu-se na obrigação de retirá-lo. O fez assim mesmo, de borco, encoberta, com a cabeça para baixo. Não demorou e sobrou no ar um cheiro seco, de sebo canino, meio cítrico. O espinho estava espremido, como uma espinha adolescente... Persistente e engordurada pelo óleo da pele. Porém, como era cão e não gente, não houve mais nada. O acúleo só saiu, mesmo... Com um grunhido, uma lágrima e uma lambida discreta. Das farpas, aquela na pele do bicho, era a mais real. As da madeira estavam velhas e apodrecidas demais para fazer doer... E as internas, doíam sim, mas eram só excesso de ego gasto.
Afinal, soltara a xícara antiga (para espremer o espinho) e nem a viu cair, espatifando as memórias inúteis, onde a casa tinha movimento. Arregaçara as treliças condenadas e o sobejo não era nem mesmo. lenha de qualidade. Hastes, estilhaços de louça, as folhas secas dos limões e as lágrimas causadas pelo fim e pela fumaça. Queimou tudo com as próprias mãos. Não, não era madeira boa para lenha, mas, exalava um perfume calmo (que a cachorra sentiu antes). No dia seguinte, pôs a casa à venda, sem consertar as janelas e mudou-se para longe... Bem longe. Não precisou decidir se levaria consigo a mestiça de muitas raças, (nela também havia ansiedade de separação, só que, era canina e controlada...) uma cadela não se dá tanta importância, por isso, só quis ir junto e foi.
Licenciada em Filosofia pela UEM (Universidade Estadual de Maringá) e mestra em Filosofia pela mesma instituição. Lecionou na rede pública de ensino do Estado do Paraná e atualmente é professora do IFPR (Instituto Federal do Paraná) - campus Jacarezinho.