ratos
Portsmouth, RI, 4 de dezembro de 1856.
Ao Conselho Permanente da Academia da Nova Inglaterra.
Potente qual detração volúvel é a opinião acadêmica acerca do demônio da perversidade. Alguns, os mais pragmáticos, acreditam ser unicamente incitamento da personalidade detectável pela avaliação frenológica, enquanto outros, os mais inclinados às ciências do oculto como nós, pregam ser manifestação transubstancial que perpassa a membrana entre os mundos. Embora nosso método considere bastante úteis os achados dos discípulos de Spurzheim sobre a compartimentação da mente, diverge significantemente quanto à sua fenomenologia, estando inclinada ao pensamento controverso de Schröpfer, que sofre, ainda hoje, acusações infundadas de charlatanismo, decorrentes da carência de perspicácia do público europeu. Evidente que as fantasmagorias podem ser manipuladas para rapinar observadores incautos e mascarar malfeitorias terrenas, de igual sorte o são diversas das ciências iluministas, mas a fenomenologia a qual me refiro reside na ciência imbuída na teurgia.
Os demônios são, com efeito, manifestações físicas do plano místico dos intentos que existem unicamente para distorcer a nossa realidade através de um impulso humano absolutamente incontrolável, que nós do círculo interno denominamos veritas per vertere. Observamos que em condições ideais que envolvem desde alinhamentos astrológicos a psicodrama prévio, horários e predisposição intelectual, humanos podem, e serão, influenciados pelos demônios da perversidade, que neste caso se manifestarão no plano físico como amimais de pequeno porte. Singularmente ratos. Em tese tal manifestação corpórea deve-se mormente às recentes notícias do ressurgimento da Peste no Oriente, fato que dispara uma imagem residual negativa associada aos roedores.
Conforme observado empiricamente, a per vertere é desencadeada quando dois fatores confluem: a existência preliminar de um pensamento humano, ainda que ínfimo, que possa produzir um mal evitável e desnecessário e a observância direta de um demônio manifesto. O pensamento logo tornar-se-á um impulso, este um desejo, que por sua vez volverá em uma vontade e então uma ânsia incontrolável até que seja saciada. Guardarei os fartos pormenores desse processo e suas devidas aplicações aos estudos do comportamento humano para a audiência com o nobre Conselho na próxima quinzena, motivo pelo qual esta missiva me precede.
Atenciosamente,
Otis Rothschild
* * *
— Talvez agora o senhor seja incapaz de compreender a importância do meu itinerário até a solene Academia da Nova Inglaterra — avaliou Otis, guardando o abridor de cartas no bolso interno da sobrecasaca —, mas vou iluminá-lo com minha história, senhor Wordsworth.
A carruagem vis-à-vis que carregava os homens cortava diligente e solitária a planície nevada do Condado de Bristol tracionada por quatro corcéis mestiços. Naquela época do ano a paisagem era monótona, com nogueiras e pinhos secos ladeando a estrada que se prolongava até os limites de Boston.
— A primeira vez em que tive contato com o demônio da perversidade foi na mais tenra infância — iniciou de súbito. — Madeleine tinha apenas quatro anos e era uma garotinha clamorosa e mimada pelos pais, meus vizinhos de porta.
Rothschild arcou-se elegantemente para alcançar uma caixa de charutos em sua valise sob o banco, filou um deles e acendeu, produzindo uma brasa que ruborizou com um brilho incandescente todo o interior da carruagem por alguns instantes.
— O senhor aceita? — perguntou estendendo a caixa ainda aberta. — Imaginei que não. Como eu dizia, Madeleine fazia barulho, muito barulho. Minha mãe insistia que passássemos o dia de Natal juntos, rodeando a lareira com nossos presentes, enquanto os adultos degustavam brandy e riam alto na sala de estar. Ela estava com um vestido esvoaçante de longas fitas azuis, brincando com a boneca que acabara de ganhar. Foi então que eu o vi — disse entusiasmado, sentando-se na ponta do banco —, o rato, perto do sofá, tinha o par de olhos mais expressivos que eu já havia visto.
Deu um trago profundo no charuto, iluminando ainda mais intensamente o interior da carruagem. Seus próprios olhos brilhavam enquanto rememorava o episódio, mas seu companheiro de viagem não esboçava reação.
— Por mais irracional que tal pensamento possa me parecer hoje, eu sabia que o roedor lia meus pensamentos — continuou — e, mais que isso, que ele concordava com minha opinião sobre a pequena. Não demorou até os cabelos da boneca ficarem presos no atiçador da lareira. O rato e eu nos entreolhamos; sabíamos o que viria a seguir. Ela então... o quê? Como o rato sabia? Ora, senhor Wordsworth, guarde essas perguntas frívolas para o final, sim?
Cerrando os olhos devido a irritação momentânea, prosseguiu com o relato:
— Então Madeleine, embirrada pela ausência do brinquedo, armou a bocarra para choramingar, mas fui mais rápido e esmurracei na pequena estorvada o bracinho da boneca, já desprendida do atiçador. Os pezinhos cambalearam para trás e o corpinho caiu sobre as chamas. O vestido de fitas azuis logo tornou-se uma crepitante bola de fogo. Eu não ouvia mais nada. Não ouvia Madeleine. No canto do aposento, os olhinhos do roedor também brilhavam com o clarão das chamas. Um acidente horrível.
Ao redor, apenas o som dos cascos lutando contra a neve e o murmúrio do bafejo gélido. Um silêncio amofinado embalsamava o interior da cabine como a um esquife denegado.
— Perceba, meu caro — disse, quebrando o silêncio, ao passo que apertava a brasa do charuto contra a sola do sapato, formando um borrão tórrido de cinzas —, que não se tratava de mero desafeto pueril. Eu era genuinamente vítima do demônio da perversidade! E ele estava satisfeito com aquele espetáculo de imolação. Como sei? Francamente, senhor Wordsworth, me parece que o senhor não prestou atenção a parte alguma da história.
Como uma tempestade de raios negros em um fundo branco, os pinheiros e nogueiras retorcidas passavam rápido pela janela quando uma batida seca no teto da cabine indicou que o cocheiro estava prestes a parar a carruagem. Uma vez totalmente imóvel, pôde-se ouvir o atrelar dos cavalos e mais três batidas, dessa vez na janela.
— Pausa para defecações! — anunciou o cocheiro com tom sisudo.
Otis achou curioso o tom empolado, mas calçou as luvas e abriu a porta da carruagem, tomando cuidado para não ser atingido pela neve que se acumulara sobre o bagageiro diretamente acima de si. Embora não houvesse uma nevasca naquele momento, a visibilidade não era muito boa.
— Seu amigo não vem?
— Wordsworth? Tenho a firme impressão de que não.
— Eu praticamente só ouço voz do senhor e os malditos cascos dos cavalos.
— Confesso que ele não é a mais entusiasmada das plateias.
— Hmmm. Você é de Boston?
— Não, estou indo para uma audição na Academia da Nova Inglaterra.
— Intelectuais... — disparou reticente o cocheiro antes de escarrar o fumo que mascava e que servia, também, a cada um dos quatro cavalos durante a parada.
— Ainda falta muito?
— Chegaremos em poucas horas se o tempo continuar firme.
Rothschild admirou a imensidão de neve e árvores secas emaranhadas diante dos olhos, pensando que talvez jamais passasse por aquele exato ponto novamente. Antes de dar um sinal de partida ao cocheiro, abotoou as calças e caminhou em direção à cabine da carruagem, onde bateu o excesso de neve das botas no pedal do para-choques.
— Fez bem em não ir lá para fora, está frio como o demônio. Onde eu parei mesmo? Ah, claro... Theodora — a evocação do nome trouxe um sorriso refreado aos lábios do homem —, meu segundo episódio de per vertere. Preciso antes trazer à luz que depois dos trágicos eventos com Madeleine, fui morar com meus tios na capital. Quando já era um rapazote comecei a frequentar o colégio. Theodora trabalhava na cozinha, de modo que, sempre que a via, tinha fuligem nas bochechas.
No findar da breve rememoração, um sorriso enorme já havia tomado o rosto de Otis. Embora não conseguisse admitir conscientemente, ele nutria afetos recentes, incluindo uma agradável tristeza, pelos eventos que estava narrando.
— Preciso confessar, meu caro, que sinto falta das noites em que ela roubava uma botelha de vinho da cozinha e a tomávamos escondidos, embriagando-nos também pelos humores da juventude, tentando a todo custo não fazer barulho sob as janelas dos dormitórios. Cativante, não é, senhor Wordsworth? — inspirou longa e pausadamente. — Eu sei, eu sei. Conheci o ar da verdadeira melancolia nas noites em que precisei deixá-la de volta na porta do dormitório e toda a alegria de seu rosto se apagava repentinamente, como uma vela sob um copo...
Desta vez, seguiram-se minutos inteiros de silêncio contemplativo, durante os quais ele manteve a cabeça colada à janela, mas ao perceber que o escassear das árvores retorcidas e a presença de uma ou outra cabana indicavam a proximidade do seu destino, Rothschild percebeu a urgência da retomada da sua história.
— Naquela tarde de inverno, Theodora disse que queria me segredar algo, mas que precisava ser absolutamente sigiloso. Um segredo nosso, ela disse. Esperei-a nos fundos do prédio principal até que anoitecesse e a cozinha estivesse vazia, como fazíamos habitualmente. Ela veio ao meu encontro com uma lamparina em mãos e me guiou por corredores escuros e serpenteantes do colégio que eu, até então, desconhecia. Sacos de farinha se empilhavam pelas paredes do corredor e da minúscula cozinha, abafada, quente, quase sufocante. Eu suava muito por baixo das roupas.
Colocou a cartola ao seu lado e folgou o colarinho tentando inutilmente conter a sofreguidão que lhe acometera, como se o interior daquela carruagem fosse a própria cozinha que acabara de narrar.
— Está abafado aqui, não é? Foi o que perguntei também a Theodora, enquanto ela soltava os fios que uniam o bojo do vestido de musselina. Seus seios saltaram para fora como dois filhotes gêmeos de gazela. Foi então que os vi nas sombras. Primeiro um, depois outro... havia pelo menos uma dezena de roedores ali nos observando, todos com pequenos olhos hipnóticos refletindo a iluminação da lamparina. Antes que eu pudesse perguntar se aquele era o segredo para o qual fui convocado, ela agarrou minha cabeça com as duas mãos e a enterrou em seu peito. Eu não conseguia respirar, e foi exatamente este o gatilho para o que viria a seguir. Nós sabíamos o que fazer — disse mudando completamente sua feição. — Minhas mãos correram por trás de suas costas e agarraram uma das cordas que amarravam os sacos de farinha e, antes que ela tivesse tempo de compreender, já havia um belo laço ao redor de seu pescoço. Enforquei-a baixo para que os ratos a alcançassem.
A paisagem monótona da planície com rara atividade humana cedia lugar às particularidades do subúrbio de Boston como atração principal das janelas da carruagem, que abria caminho nas ruas esvaziadas pela nevasca. Vidraças altas escondiam olhares indiferentes ao que se passava fora delas.
— Bom, meu caro Wordsworth, nosso destino se aproxima e temo que eu deva me apressar com meu último relato acerca do demônio da perversidade. Sim, houve mais um — disse em um sobressalto entusiasmado —, tão recente que sequer fiz minhas anotações sobre o ocorrido. Uma eventualidade tão significante que soa como predestinação.
Um brevíssimo chiado vindo da parte inferior dos bancos fez Otis suprimir um sorriso de excitação, suspendendo a narrativa por alguns instantes.
— Pois bem, há alguns meses, quando comecei a planejar a submissão dos meus estudos para ingressar no corpo de pesquisadores do Departamento de Comportamento Humano da Academia da Nova Inglaterra, tomei conhecimento de que estaria disputando a vaga com um jovem de Rhode Island, assim como eu. Mas seu estudo descartava como um todo as variáveis teúrgicas e esquizotéricas do comportamento; uma grande afronta aos estudos ocultos. Então nós sabíamos exatamente o que precisava ser feito.
As pupilas dilatadas tornavam nítido todo o sadismo estampado em seu rosto.
— Descobri onde o tal rapaz morava e o segui por alguns dias. Sabia onde comia ensopado de mariscos aos sábados. Sabia quanto devia ao seu senhorio. E, mais importante, sabia o dia de sua audição em Boston, no qual me certifiquei de agendar a também a minha. Você certamente não sabe, mas precisei pagar o quádruplo ao cocheiro para que pudéssemos embarcar juntos nesta mesma manhã, meu caro.
Um solavanco causado por um paralelepípedo solto fez com que o corpo inerte de Wordswoth se projetasse para frente, revelando perfurações nos olhos, bochecha e pescoço. Otis encarou impávido o sangue coagulado nos orifícios da face enrijecida do companheiro de viagem antes de acomodá-lo à posição original.
— Sinto muito que tenha sido necessário golpeá-lo algumas vezes com o abridor de cartas antes da minha exposição oral, mas eu precisava ter certeza da sua aquiescência quanto à prioridade da minha pesquisa antes da nossa chegada. Confesso que existe um certo sentimento de redenção na enunciação da veritas per vertere, ao passo que a torna um risco.
As mãos de Rothschild alcançaram a valise sob o banco, desta vez, repousando-a sobre o colo. Entre manuscritos avulsos e livros encadernados em couro, havia, ao lado da caixa de charutos, um pequeno estojo com ilhoses. Uma vez aberto o cárcere, um rato preto de olhos brilhantes fuçou pela abertura e foi prontamente atendido com um pedaço de pão.
— Preciso confessar também que parei de esperar que o demônio me procurasse.
O banquete foi interrompido pelo cocheiro batendo três vezes na janela, anunciando o fim do itinerário combinado, diante dos portões da Academia da Nova Inglaterra. Otis fechou a valise, aprontou-se e desembarcou do veículo com um ar sombrio.
— O senhor Wordsworth está indisposto e pediu que o levasse para a estalagem na entrada da cidade — disse enquanto estendia a mão com um envelope pardo recheado de notas amassadas — sem incomodá-lo.
— Sabe de uma coisa, o senhor é um dos passageiros mais estranhos que, em anos fazendo esta diligência, já servi.
— O senhor disse estranho?
— Sim, estranho. Sempre falando baixo, encarapitado, soturno e furtivo, como se escondesse segredos nas solas dos sapatos.
— Ora, fico lisonjeado, meu caro. Dadas as apropriadas circunstâncias, somos todos como ratos.
Lucas Marchetti é paulista sem radiciação, ficcionista, tradutor, editor e pesquisador de horror contemporâneo. É organizador e autor da antologia Terrores Latinos da Luva Editora. Seu trabalho dialoga com a arte marginal, a polissemia, a transgressão e o fetichismo na construção de um imaginário insólito que reflita nossa identidade e cultura.
@olucasmarchetti