calçando a liberdade
Só há duas certezas infalíveis nesta vida, a primeira é a morte, a segunda é que quando levantamos pela manhã e calçamos nossos sapatos, nós não temos nenhum controle sobre o que irá acontecer e a que situações nossos passos irão nos levar. E a minha história é sobre esta segunda assertiva.
— Nelson! Nelson? Acorda!
Abro os olhos e me deparo com Maria sacolejando meu corpo, acordo exasperado, mais uma vez o cansaço pesava os meu ombros, as minhas pálpebras não conseguiam se manter abertas, já fazia dias que eu não dormia direito, noites em claro estudando para aquela prova. ‘’Aquela prova’’- penso. Rapidamente me ajeito na cadeira envergonhado por ter dormido na aula, peço desculpas a professora. Mas afinal, a aula era chata, daquelas que foram feitas pra encostar a cabeça nos livros e dormir, e eu havia trabalhado o dia inteiro, a semana inteira, por horas em pé estocando as mercadorias na loja de doces do seu Omar. Mas resolvi não me explicar, já sabia que ela diria ‘’sem esforço, sem merecimento’’. Maria me olha e ri da minha cara amassada após meu cochilo.
Eu e Maria não tínhamos muito em comum, eu, um cara obstinado pra mudar de vida, ansiava largar meu emprego na distribuidora de doces e me lançar num trabalho que me pagasse melhor, que eu pudesse retribuir mais a minha mãe, um salário que durasse até o final do mês. Mas as contas não davam tréguas, eram muitas, as obrigações eram diversas, penso em Dandara, minha filha, no leite, nas fraldas, na pensão, no futuro dela, ela só tem 2 anos, eu 24 e já me preocupo com o amanhã, com suas futuras escolhas, com a sua vida, sobre o que ela almeja ser, seus anseios, seus sonhos,espero poder realizá-los.
No entanto, Maria não possuía essas preocupações, sempre que eu descia do ônibus avistava seu pai parando o carro no estacionamento do curso para deixá-la nas aulas de enfermagem. Ela sim tinha tempo pra estudar e se dedicar pra ‘’aquela prova’’, Maria não dormia nas aulas e nem precisava se explicar para a professora, ela podia estudar durante a manhã e à tarde, sem virar noites, ela ‘’merecia sem esforço’’.
‘’Aquela prova!’’ - penso novamente, não via a hora de poder ter o resultado em minhas mãos. Olho minhas mãos e observo que estão completamente suadas, o nervosismo já era meu companheiro, as crises de ansiedade eram corriqueiras, o frio na barriga se fazia constante, a este ponto o suor já se espalhava por todo o meu corpo. Eu precisava da nota, esta prova era a que me levaria para o estágio de instrumentação cirúrgica, e após o estágio eu estaria apto para tentar um novo emprego, um novo salário, uma vida melhor pra minha mãe, uma vida melhor pra Dandara. Meus sonhos a depender de um número numa folha de papel com algumas palavras escritas – reflito.
A primeira aula termina, minha ansiedade não! A próxima aula inicia, a professora entra na sala com as provas corrigidas, tento encontrar a minha pela transparência da pasta em que ela as guardou, falho! Ela anuncia que só entregará o resultado no final da aula. Meu coração aperta, minha mente desconcentra, a professora explicava seu conteúdo e eu não assimilava, meu corpo e minha mente estavam distantes, meus olhos não registravam a matéria no quadro, meus ouvidos sequer escutavam a voz da professora. Foram os 50 minutos mais longos da minha vida.
Faltando 10 minutos para terminar a aula ela começa a distribuir as provas. Nelson! – me chama a professora. Levanto espevitado da cadeira, caminho até sua mesa, eu pego aquela folha de papel com algumas palavras escritas com um número fixado em cima: 8,5. Passei! – penso. ‘’Passeiiii!’’- grito, ‘’shiiiiiu’’ – me silencia a professora. Mas ela não é capaz de silenciar a minha mente e o turbilhão de sentimentos que se passava por todo meu corpo.
Eu consegui! Olhei pra Maria e lhe dei um abraço, eu só conseguia transbordar alegria, ela retribui, ela também conseguiu, mais que isso Maria gabaritou, fico feliz por ela, fico feliz por mim, Dandara ficará feliz também. Prometi que a levaria ao cinema pra comemorarmos se eu passasse.
Naquela noite não dormi, naquela noite sonhei acordado, só pensava no par de sapatos do centro cirúrgico que eu teria que comprar, como eu esperei pra poder calçar esses sapatos.
O dia amanheceu rápido, calcei meu tênis e levantei da cama, já estava atrasado para o trabalho, mal deu tempo de tomar café e me despedir com um beijo de minha mãe. Ela sempre me abençoava antes de sair de casa e apesar de eu não possuir muita crença me sentia protegido por ela. No entanto, não deu tempo de sentir o café e o amor da minha mãe me aquecer pela manhã, já me preparava para a bronca que levaria do seu Omar, ‘’pontualidade Nelson!’’ – imagino-o falando.
Nem a bronca do seu Omar foi capaz de diminuir meu estado de felicidade. A tarde caía e meu expediente na loja se encerrava, troquei de roupa e pus o uniforme do curso, fui caminhando até o centro da cidade para comprar o sapato do centro cirúrgico. Eu tinha 100,00 no bolso e no dia anterior eu já havia sondado que o que eu queria custava 47,00, me restaria 53,00 para passar o restante do mês.Penso no leite, penso na fralda, penso em Dandara, penso que preciso rapidamente mudar de vida, por mim, por ela. Mas antes, os sapatos, estes serão meu passaporte para a liberdade, o início da virada na minha vida.
Acontece que a gente não tem nenhum controle sobre o que irá acontecer e a que situações nossos passos irão nos levar. Entrei na loja de sapatos e antes mesmo que eu pudesse explicar qual eu queria e se tinha o número 44, a vendedora correu para trás do balcão assustada. Prontamente olhei para trás para vê o que ou quem a assustara! Não havia ninguém, apenas eu e ela. Eu havia a assustado, eu era o motivo do seu medo, era de mim que ela havia corrido.
É sempre dolorido quando acontece com a gente, é sempre inesperado quando ocorrem esses momentos, por muitas vezes são frações de segundos, são olhares, são gestos, são detalhes, e naquele dia foi uma vendedora correndo de mim, um cara preto, porque achou que ia ser roubada. Ela não precisou proferir sequer uma palavra, eu também sequer conseguia. Minha única ação foi me retirar da loja, eu era só um cara preto se esforçando para realizar algo tão banal: comprar um sapato!
Meus pensamentos em meio a toda confusão de sentimentos me levavam a reflexões incontroláveis. Penso em como o dia iniciou estranho e eu não havia percebido, sem o beijo e a benção de minha mãe, sem o café aquecendo meu corpo. Em questões de segundos penso em Maria, ela havia me dito que compraria os seus também, mas Maria não tinha essas preocupações, era branca e possuía uma boa condição social, ela deve ter conseguido comprar os sapatos.
Os devaneios continuam, lembro do ensino médio, da aula de história, o professor falava de escravidão ‘’os escravos eram proibidos de usar sapatos, quando conseguiam a liberdade compravam um par de calçados como símbolo da sua nova condição social’’- reflito essa lembrança, uma lembrança vívida, presente, eu só queria poder calçar essa liberdade. Esse mesmo professor sempre dizia que eu tinha o nome de um revolucionário negro ‘’Nelson Mandela’’- ele dizia. Foi por essas mesmas aulas que registrei minha filha de Dandara, também revolucionária e negra. No entanto naquele dia não tive a força de Mandela nem de Dandara para revolucionar, chorei! Chorei por mim, por Dandara e por tantos outros.
Escrevo estas linhas dizendo que eu desejava poder contar minha história de uma forma diferente, mas isso demandaria modificar mais de um século da história, e eu tenho pressa, não tenho mais tempo para reparações incompletas, mal sei dizer quanto tempo ainda vivo, ser preto é ter pressa, é ter medo constante, é inquietude, e por vezes é angustiante. Mas, ser preto também é ser resistência e foi por isto que mantive o sonho vivo.
Dois dias depois comprei os sapatos, neste dia levantei da cama, tomei meu café, fui abençoado e beijado por minha mãe, entrei em outra loja, pedi o número 44, e ao experimentar nos meus pés me senti calçando minha liberdade, ansioso sobre o que irá acontecer e a que situações meus passos irão me levar dentro deste par de sapato.
Késsia Gomes é uma mulher preta, pesquisadora do segmento infanto-juvenil e de questões étnico-raciais. Apaixonada por literatura e livros, escritora nos tempos vagos. É Assistente Social, Mestra em Serviço Social pela UFRJ. Compõe os coletivos: Bayo (Laboratório de Narrativas Antirracistas), o Fórum de Mulheres Negras de Itaboraí e o Observatório de Itaboraí.
@kessia.nascigomes