ATMOSFERA DAS RETICÊNCIAS
I
Alguém morde uma maçã em silêncio às vésperas da tarde.
Crava os dentes entre a carne da fruta, e devota-se
ao gosto incendiário do vermelho .
Enquanto isso, invento uma canção para escutar o vento como se escuta,
lentamente,
as fábulas das noites.
Uma canção em palavras para entender as emoções mais escuras.
Alguém, dentro da tarde, procura o próprio silêncio
nos incontáveis ponteiros de prata universais.
Alguém em sua solidão procura pelos vales, pelas sombras,
pela vala mais funda
a consumir de uma única vez os pedaços da existência.
Alguém chama por mim no eco dos pensamentos
neste instante escrevo o poema que alarma e penetra minha sombra.
Um poema onde vejo a boca que morde o fruto estrangeiro
e debruça-se num grito que mastiga as cascas, os nomes, o laço,
as vertigens do vermelho
ao ver a solidão que se aproxima e transforma as coisas em silêncio,
em engasgo, em um fruto aniquilado.
II
Esta é uma atmosfera de reticências,
surtos e angústias de cabelos grisalhos.
Na boca que sopra esse lento modo de sofrer,
reside uma cratera desconhecida de arbustos em desordem:
estranhas imagens de cicatrizes
paisagem intacta, memória coagulada nos ossos,
mente brutal que alimenta os flancos selvagens da carne.
Esta é uma espécie de crime que tem sua fundura nas raízes
do amor
na arte ardilosa da paixão:
− faz parte do instante dos vivos e dos mortos.
Mírian Freitas, escritora, doutora em Literatura Comparada, professora do Núcleo de Línguas do IFSUDESTE- Juiz de Fora. Publicou: Intimidade vasculhada, Exílios naufrágios e outras passagens, Quase, Quando éramos pássaros e outros poemas abissais, Caio Fernando Abreu: uma poética da alteridade e da identidade (Ensaio Ilustrado), Mosaico, A memória é uma oficina de ossos.
@mfreitasbrazilmg