Fim de tempos
Vivia na beira d’água. Passou alguns anos plantando seu cabelo, em repetição contínua dos mesmos afazeres. No café da manhã dava a laranja aos cachorros e comia os caracóis das cascas. Mastigava 40 vezes a cada mordida, engolindo tudo com um gole de leite. Para o almoço, preparava os dedos, puxando a ponta de cada um até que ficassem mais longos, e ia ao jardim caçar pedras. Levava o lenço quadrado que amarrava em torno ao pescoço, onde ia guardando suas presas. Quando lotado o volume ou o peso doía em seus ossos, voltava para dentro. Colocava as pedras no liquidificador, obtendo um fino pó, ao qual acrescia mel. Despejava a mistura em uma tigela que ia para o forno. O calor dava ao líquido consistência, tal como um pudim, devorado ao meio-dia em largas colheradas.
Barriga repleta, abria a janela e colocava uma cadeira embaixo, ao lado de dentro da parede. Sentando, apoiava a nuca no batente, o cabelo despejado para fora, de forma a encaminhar seu crescimento. Depois abre a porta e enrola a ponta de seus cachos de um lado maçaneta, do outro a mão fica movimentando-a para cima e para baixo, abrindo e fechando a trava da porta, amolecendo os cabelos para que se acostumem com impulsos resistentes.
Ao longo do entardecer, começava seu banho. Primeiro, enchia com água do córrego três jarras, nas quais despejava ora flores de manjericão, ora de alecrim, apertando também algumas de suas folhas para que caísse o óleo. Com essa água temperada lava o cabelo e as dobras e os orifícios e as concavidades e as protuberâncias do corpo. Havia uma larga pedra ao lado do curso da água. Uma távola redonda onde estirava-se como lençol, secando pelo sol ali guardado. O que sobrava de pingo e gota, o vento levava.
A fome vinha quando erguia o tronco, junto com a vontade de já estar em casa. As pernas se abriam em passos largos para encurtar a distância e chegando corria ao armário da cozinha. Uma lata de peixinhos em conserva era aberta, tomates cozidos iam sendo espremidos e ralados, o fogo levantava-se os aquecia juntos. Comia o belo molho com a massa de trigo fiada na roca - trabalho que fazia antes de acordar, fio contínuo amontoado no prato, enrolado no garfo.
O líquido da conserva era guardado para as pontas de seus cabelos, que apoiadas na beirada do alumínio, abriam suas bocas e o bebiam todo. Os pratos eram lavados, uma vassoura amontoava a poeira dos cômodos, e serenatas eram cantaroladas junto aos cães que uivavam na porta. Segurando e acariciando os cabelos, dizendo-lhes palavras amáveis, se deitava entres os travesseiros na cama.
Dentro de cada fronha, estavam escondidos textos, cópias de poemas, livros, músicas, ensaios científicos, receitas e tantas outras organizações das letras do alfabeto. Lia um tanto destes escritos para cada um de seus fios. O fio que saia bem do ponto do meio da nuca, por apego e teimosia, pedia devotamente a mesma leitura, e só se aquietava ao escutar my little grasshopper airplane cannot fly very high I find you so far from my side I’m lost in my old green light…
Assim seguiam as ações no tempo, na forma mais estreita que se denomina uma rotina. E nestes anos sua plantação de cabelo seguia frondosa, tornando-se véu, tamanha a sua espessura. Só se viam as mãos, se esgueirando entre os fios para seus afazeres. Nos dias em que o véu começou a circunscrever a posição dos pés sobre o chão, o despertador apitou e começou o luto.
Recolheu todo o volumoso cabelo em seus braços. Entre afagos, os cachos iam absorvendo o sal das águas que escorriam pelas bochechas. O peso deles encharcados, quase tombou sua cabeça. Curvada ao chão, com unha afiada ia cortando, um a um de seus fios. Farta colheita, que caía aos seus pés. Feito o trabalho, os braços se juntaram ao corpo, os olhos foram cobertos, a boca abocanhou ar, as pernas dobraram e o ninho que se formou ao seu redor acobertou seu sono.
Dormiu ali, com o peito estendido ao teto. Oito horas com a cabeça reta; oito com o rosto virado para a direita; oito para a esquerda. De bruços, dormiu mais seis horas e seis minutos. Perpendicular ao chão, cinco horas sobre o lado esquerdo e três sobre o lado direito. Trinta e oito horas e seis minutos de incansáveis sonhos terrestres. Adentrando pelos poros que recebiam a chuva, havia vias que se alargavam e se bifurcavam. Levavam a grandes aposentos subterrâneos - salas, praças e santuários - alguns mais quentes, outros gélidos. Curiosamente iluminados, por uma luz aveludada, a qual só faríamos juízo se a chamássemos de sopro.
Acordou com um dos cachorros lambendo seu pé.
Ana Pacheco Gavião é artista visual, que também se dedica à escrita de suas fabulações. Tem 22 anos de idade e mora em São Paulo, cidade em que nasceu. É ainda estudante, atualmente cursando Bacharelado em Artes Visuais no Centro Universitário Armando Alvares Penteado (FAAP).
@ana.pacheco__