Quebra-Cabeça
No propósito de levantar um estudo sociológico, uma expedição extraterrena desembarcou através de disfarces humanos nos povoados de Samambaia, Cruzeiro e Firmeza.
Criado por duas raças, os Ismogs tinham a base de sua civilização em Mogus; com quatro continentes e mares de bromo banhando a terra firme era uma rocha planetária inabitável para humanos em quase sua totalidade, salvo o cânion do Leste: o abrigo geológico de um lago da proporção de Rondônia e de matiz cereja.
Detentores de transporte com dobra espacial, entravam e saiam discretamente da Terra — atravessando uma rota incomensurável de 33 milhões de anos-luz — e de outros Setores Primários (1) sem nenhum empecilho.
Num transe platônico pelos Homo Sapiens, os tripulantes se descuidaram com a vida selvagem e Kabum; uma famíla de ratos lixou os dentes pontudos na tubulação do reator nuclear. Expostos ao perigo da corrente elétrica, os roedores torraram, impregnando a sala de máquinas com uma nuvem de escarrar o estômago pela garganta, acompanhada de reduzidas explosões em amarelo e vermelho vivo, respingando fragmentos de focinho, rabo e até cabecinhas de uma ninhada de ratinhos num gradil recém pintado.
Sob vigília, os pesquisadores vieram como em uma boiada para saber o tamanho do estrago.
Somente um Ismog não estava na madrugada do acidente, era o estudante Hássio. Discrepava do seu grupo, pois na parte superior do seu crânio, existiam cinco antenas, no lugar de quatro. Abençoado pelo membro extra, ele era dotado de uma hipersensibilidade olfativa.
No minuto em que Hássio abriu o seu aplicativo de registros experimentais sob as sombras de um flamboyant, leu a mensagem:
Comunicado Geral
16/08/2020
“Hoje às duas e quatorze da noite, os ratos, é o seu nome popular, roeram um conjunto de fios do nosso reator e estragaram o funcionamento do motor e da frequência da nossa comunicação. Pela falta de mão especializada, estamos presos nesse lugar indefinidamente! Pedimos calma e jamais revele a verdade para o seu objeto de estudo”.
“Céus! Eu não envelhecendo e morrendo nesse planeta está de bom tamanho.” reconheceu o pesquisador na sua mente, afastando o assombro como se pudesse ser um giro de caracol no meio dum limoeiro.
2023
Lá na Rua 6, após a travessia da ponte do Rio Piracanjuba, Paulo balançou as tranças box braids de cor mostarda ao soltar uma bola de totó. No campo apertado e apropriado para dois adversários, a esfera entoou em descendência as colisões de um Pica-Pau.
— Chiado, faz uma caipirinha e entrega pra minha lobona — referindo-se a Paulo, um dos jogadores deu uma piscadela para a namorada — e não adianta recusar trenzão, minha lindeza.
— Don Juan, minha asma não é piada — retrucou Paulo desejando que o pai, o jogador rival, intervisse.
— Filhão faz lá a bebida pro primo do seu pai, escuta esse xavecador não — Guardando o copo de cozumel, Igor passou a bengala branca ao filho.
“Que preguiça de conversarem comigo como se tivessem falando com um bobão. E daí se não enxergo? Sou adulto, não um bebê. ” disse Paulo em sua psique com os dedos dos pés comprimidos.
Nesse meio-tempo no Bar da Baixinha acontecia uma quadrilha e na apresentação cisheteronormativa, abarrotada por um manual de regras para acasalamento, Paulo escapou pelas arestas da roda irregular.
O que Paulo não aguardava era que sua alma prometida, movia-se entre o fluxo de pseudo dançarinos.
Ditando sua própria moda, Cássio, caracterizado numa calça animal print de barra babada, dissipou o ritmo fazendo os curiosos pela sua presença esbarrar entre si. “Esbanja estilo esse aí” confessou uma loira de boné country fitando o colar de cristais no pescoço dele. “Óia a geringonça, tem vergonha não?!” xingou um fazendeiro de topete, estimulado pelo burburinho.
— Estou passado, largaram de mão dos flashs, pra reparar na minha roupa. Os cruzeirenses que não conseguem me suportar volta pra casa! — em um tom de voz trovejante, o forasteiro foi ouvido pelo enamorado.
Depois de largar a caipirinha na mesa do tal primo, Paulo no seu tempo se guiou até a origem do conflito predisposto a “explorar” o peito, o pescoço e a cintura intocada do tão aguardado turista.
Meticuloso aos movimentos do companheiro — pela leve hesitação no terreno acidentado — Cássio desistiu de contra-atacar os “abutres” para mendigar afeto dele, e aconselhá-lo a abdicar dos consumidores alienados, dos apelidos despretensiosos, da segregação racial, afim de acender no patamar de Santo Elesbão.
— Boa noite, posso te ajudar a encontrar o que perdeu? — assoprou em seu cangote. Numa reação instintiva, Paulo afastou-se daquele vento ludibriante.
— Gato, vim curiar o alvoroço, obrigado por poupar meu esforço Cássio.
— De nada minha razão de existir. O que te faz gostar deste ambiente? Pega seu pai e vem comigo para as estrelas — indagou Cássio, degustando a fragrância de cupuaçu exalada dele.
— Oi?! — realçou recolhendo o rosto.
“Infringi o artigo três, como vou me corrigir? Ele pode suspeitar” numa pausa, Cássio encolheu os lábios, à procura da resposta adequada.
— Traz uma pururuca pra mim e dança forró comigo. E vamos dançando até eu me aproximar do seu pai, vai deixar?
— Põe meu pai no meio não. Você tá mudado porque os fofoqueiros só falam do seu look, a inspiração veio de um famoso?
— É porque estou me desconstruindo, fui influenciado por um bom círculo lá no Uruguai. — contou Cássio dando uma risada retraída. — Já te falei do meu nome de nascimento? Antigamente meu nome era um elemento químico, uma herança singular dos filhos dos meus avós, quando pude fiz a alteração no cartório.
Paulo fez uma cara de “Sério? Não me diga” e subverteu o cenário para que os dois diminuíssem a distância.
— Devia ter me convidado de primeira, eu ia agradecer. Me deu vontade de te perguntar qual era o seu nome, mas não sei se é uma boa ideia.
— Hássio, o elemento 108 da Tabela Periódica.
Erguendo o maxilar do outro, Paulo sentiu a barba penteada e uma temperatura elevada na maçã do rosto do seu afeto. Estava enfermo? Como conseguia ter tanta vivacidade com o rosto ardendo em chamas? Embora não se dispusesse da visão, Paulo encarava a escassez de uma procedência, ou o físico ímpar de Cássio como um quebra-cabeças visível; no entanto, ele já tinha encaixado ¾ das peças do tabuleiro.
— Quer que eu saia daqui com você para qualquer lugar, então eu levá meu pai junto, o veio adoece sem mim e eu amo ele.
Sorrindo com traços de borboleta-monarca, seu prometido sambou, rebolou, através de gestos tão espontâneos que os quadrilheiros desistiram da antipatia incompreensível. Entretanto, ainda não havia chegado o ponto final.
— Paulo, mexe o corpo comigo!
— Há quanto tempo cês tão entre nós? — provocou o preparador de bebidas, molhando suavemente a orelha do bailarino.
Cássio murchou feito balão de aniversário e não teve outra, descumpriu o protocolo: “meu bem, fica entre nós, promete? E como nós somos um casal, vou me abrir. Meu nome ainda é Hássio, Cássio é uma - ” confessou Hássio. Paulo por sua vez inteirou: Mentira. Apesar de ter me encantado por uma mentira, aceito deixar a cidade e te amar nas estrelas (2).
Notas de rodpé
(1) Setor Primário para um Ismog, é uma parte do espaço habitada por seres com baixo avanço ético e científico.
(2) O conto foi inspirado no universo da Aialika e Amat, o terceiro livro em produção do autor, formado por um mundo de alta fantasia e uma utopia de ficção científica.
Eduardo mora em Goiânia. Em 2022 publicou Vibração das Cores, um livro com histórias LGBTQIAP+. O original foi aprovado para ser traduzido pela Caravana Editorial. Já em maio de 2023 publicou o segundo livro, Na Toca dos Guarás (um romance gay). E foi um dos organizadores da primeira antologia da Opera Editorial.
@edumaachado