14 de fevereiro de 2011.
112 horas sem dar risada.
Acabo de sair do trabalho e estou sem comer nada. Fico isolada, numa sala sem ar condicionado (nesse calor!) durante 8 horas. Seria habitual eu reclamar, mas hoje não, não esperem, pois eu já passei dessa fase. Moro com minha família. Meu marido chega depois de mim do trabalho, sempre exausto. Minha vida é boa, não tenho do que reclamar. Estável. O que eu poderia querer mais ? Até que sou respeitada, talvez por ir sempre no embalo da maré. Muitas pessoas gostam de mim. Minha mãe sempre me disse isso, acho que ela se referia à ela mesma. Tenho minhas dúvidas.
73 horas sem pronunciar uma palavra.
Dizem que eu estou mal. Eu só não quero falar.
324 horas sem olhar nos olhos de outro ser humano.
Não fico mais cansada. Há nervos que não respondem mais (não só nos músculos). Sinto bem, tudo. Não, obrigada. Meu marido está perfumado hoje, e também fez a barba, acho que é uma ocasião especial. O marketing do Capablanca era ter dito que nunca havia lido um só livro de xadrez. Hoje trabalhei o de sempre, não há mais o que comentar.
Resolvi ligar o rádio ontem. Sinto falta de Bossa Nova. Talvez se eu a ouvisse, conseguiria chorar.
79 horas sem espirrar.
Era um sopro no peito. A dor passou logo. Nunca liguei para doenças. Mamãe achava que eu era asmática. Ela sempre resolvia tudo, hoje não posso fazer o mesmo.
192 horas sem ler nada.
Lembrei-me de uma peça de Ionesco, que eu assistira na juventude. Aquela que algumas falas eram retiradas de métodos audio-visuais para aprendizado de línguas. Meu filho me ligou hoje, acho que ele estava na Alemanha, na Grécia ou em Jundiaí, não sei bem ao certo. Fiz o mercado com o décimo terceiro, foi preciso economizar para comprar o peru. Sinto-me completa.
13 horas sem olhar no espelho.
Não há por quê me preocupar com a aparência. Lembrei-me do professor de francês da firma. Era alto, moreno, magro. Pouco expressivo: ele me deixava feliz. Era gay.
666 horas sem comer chocolate.
Foi quando eu conheci meu marido. Ele veio me consolar na época. Ele é baixo, branco e gordinho. Hoje, careca. Um santo. Serve-me café na cama no meu aniversário. Eu devia gostar dele, pois ele é muito simpático. Gosto de homens casados, inclusive do meu.
Hoje é o primeiro dia que começam a me dar remédios. São umas bolinhas miúdas. Tomo sempre com água, nesse ritual que me parece alheio. Todos aguardam ansiosamente uma reação. Meus olhos não piscam. Engulo como se fossem bolinhas de papel, sinto-me igual. Não sinto muita coisa.
As presenças robóticas em casa não se cansam da rotina. Ensinei bem a todos. Qual o interesse no outro que não possa ser resolvido sozinho? O sindicato vai para o comício e eu vou fazer hora extra.
[Escrito em 2009]
Igor Milenkovich Ávila nasceu em 1983. É escritor e professor de francês e de português. Em março de 2023 publicou seu primeiro livro de poesia passeios no íntimo. Fez bacharelado, licenciatura e mestrado em Letras Português/Francês na FFLCH/USP (concluiu em 2012).