Focus
o acidente.
Cada elemento vacila. Cada partícula na própria posição. Reter um pensamento não consigo, um grande nada. O tempo passa lento e avulso, enervo-me, ajo estranho, um embaraço. Converso de improviso, espanto-me, sinto-me enlouquecer. É ruim – não sei porque insisto nessas fumaças. Mas Fernando me pediu que colocasse uma música, e assim eu prosseguia quando tocou o telefone. Era meu pai, supus que sem saber a que horas eu estaria em casa, mas haviam batido em seu carro, no carro que estava comigo. Informaram-lhe por telefone.
Obtusos, saímos eu e Fernando do quarto de neblinas em direção à rua. A cena era esta: um Cobalt jazia em sua lateral ao lado de meu carro – do Focus do meu pai, ainda parado onde o deixei, rodeado por curiosos de braços cruzados. Compreendi que estava apenas ameaçado pela aberração que é um carro capotado, o qual lhe mostrava a barriga escura de segredos mecânicos. Tão próximos, sem todavia se tocarem, pensei que meu carro se safara por pouco da besta de plástico e metal, então, aproximei-me do grupo que rodeava a cena, e um sujeito me perguntou:
— Você é o dono do Focus? – imediatamente, notei que algo mais havia de errado. Na verdade, o para-choque tinha sido atingido, e a roda traseira se desvirtuou de seu eixo, para dentro do veículo, de forma perturbadora.
Liguei para meu pai enquanto, ao redor, os curiosos falavam – e falavam bastante, em forçosa indignação. Pelo que diziam, descobri que o motorista havia fugido, ferido, descera a rua a pé, sem direção.
— Devia estar veloz.
— Devia estar bêbado.
— Um criminoso.
— Você tem seguro?
— O carro é seu?
— Leve o cara no Pequenas Causas.
Meu pai concluiu que ele não era necessário ali.
Entrementes, Fernando andejava em silêncio. Perto do carro virado, surpreendeu algo num monte de pedaços de vidro. Era um objeto, que recolheu com uma das mãos e guardou para si. Ali, onde parei – onde parava sempre – era cercado por um dos lados por uma grade que protegia os fundos de um extenso terreno de um depósito de construção, do outro lado do passeio. Os fundos desse empreendimento eram cobertos por um denso matagal, tão alto e espesso que se pressionava contra a grade, mesmo superando-a, cercando meu carro pelo lado contrário que ameaçava o Cobalt.
— Ele ta embrenhado aí no mato, Gabriel – sussurou Fernando – vai ficar escondido até o povo ir embora. Encarei aquele mato todo: uma grande mancha na noite, mal iluminada pela luz de mercúrio.
— Veja isso – prosseguiu Fernando colocando um caderninho em minhas mãos, bastante sujo. Folheamos, e nele havia nomes, números e códigos anotados à caneta. Era feito manualmente, com páginas de rascunho, encontrando-se no verso de cada folha fragmentos de textos impressos de toda ordem. Além disso, a capa era feita de cobre, marcada com o escudo do nosso time do coração, e eu lhe disse:
— Devolve isso pra lá.
— Eu não – e Fernando o pôs no bolso.
um PM e um reboquista desceram a rua.
Um PM de moto surgiu à rua. Irado. Era um sujeito alto e calvo, e pelo escrito em seu peito era o sargento Lopes.
— O dono do carro?
— Eu
— Do capotado – arregalou os olhos.
— Fugiu – interveio aquele sujeito que me abordou primeiro.
O guincho que levaria o carro do foragido chegou logo em seguida. Era comandado por Agenor, o reboquista, de quem tão logo conhecemos não só o nome, como também habilidades dentro de seu nicho. Sargento Lopes, talvez prevendo o estresse e a necessidade de um esforço coletivo para desvirar o Cobalt, não anteviu a perspicácia e manha do reboquista Agenor, um homem baixo e ágil, cujo os cabelos – e eram muitos – eram todos brancos. Em um jogo com o cabo de aço, a força hidráulica e pontos nevrálgicos dos eixos do carro, pôs rapidamente o veículo avariado em sua posição natural, no susto de um grande estrondo, fazendo com que esse gemesse no que restava de sua machucada suspensão, entre pedaços de vidro, tinta arrancada e carcaça difusa.
Com uma lanterna, sargento Lopes começou a investigar o veículo. Encontrou cartões de visita de empreendimentos diferentes, uma máscara contra COVID e moedas no assoalho.
— Veja no porta-malas se não há ninguém – sugeriu uma voz.
Fez, embora furioso, mas não encontrou nada interessante ali atrás. Temeroso, em pensamento, concluí sua investigação: evidente, sargento Lopes, que é o carro de um filho da puta. Ressalto, contudo, que do tipo comum.
batalhão.
Era um outro dia, o batalhão estava vazio. Andei por corredores sem encontrar uma alma-viva, intruso no lugar daquela gente rija. Depois de ir e voltar em uma larga passagem de portas fechadas, virei-me de volta à saída, quando esbarrei com um policial militar.
— Preciso imprimir um BO.
Ele me levou em outra direção, a um corredor mais estreito que eu ainda não explorara, adentrando numa sala onde outro policial, com a parte de cima da farda para fora das calças (e sem quepe), estava de pé, com um grande número de papéis nas mãos, presos por um grampo.
— Cabo Meireles, ajude o rapaz.
Ele girou seu longo e pesado corpo até a mesa naquela sala administrativa, evidenciando o suor que escurecia a farda nas axilas e umedecia, pelas mãos, os papéis que retinha. Por usar seu uniforme daquela maneira, tive a impressão que estivesse de pijamas, igual que parecia um funcionário especial, por estar diferente. Enquanto digitava em seu teclado com apenas um dedo, reparei na sala e seus ruídos. Era pintada de uma cor amarelada, suja, descascada, e portava móveis também amarelados pelo mal uso, mau tempo e própria má qualidade. Atrás de mim, outro policial, mas trajado a rigor, acessava um equipamento de rádio:
— O autor do chamado errou o endereço… ou foi o sargento – uma voz feminina se queixava pela saída de som.
Eram 15 horas de um dia moroso.
Cheguei em casa como o policial de pijamas – um sem fim de papéis nas mãos e um ar pasmado. Fui até meu pai. Roncava sonoramente na escura sala de televisão – as janelas fechadas – o aparelho ligado na GloboNews.
ônibus.
Agora eu tinha o caminho em mãos, imperfeito como era. Sargento Lopes me informara que em Belo Horizonte conseguiria os dados do meliante. Não compreendi aquele repentino poder. Nome, endereço, RG, CPF – tudo me forneceriam. Então fui, recordando-me do Focus: esticava, os bancos de couro preto, a direção macia como pele de mulher. O sistema de som, uma uva. Nele fiz minha primeira viagem com uma turma de amigos, a Rio Piracicaba – ainda assim, naquele dia, a Belo Horizonte, eu ia de ônibus. Restaram-me os ônibus que, todos sabem, nunca mais foram os mesmos após a pandemia. Talvez já retornaram, sim, à anterior precariedade, mas eu pensava ou ignorava essas coisas sem nenhuma emoção, afastado (havia pensado que para sempre) do transporte público após o Focus prata – além dos ubers, é claro. Cerca de 50 minutos de viagem, com alguma demora, o centro de Belo Horizonte invadia as janelas.
No retorno à cidade metropolitana, os pontos estavam cheios e a gente se impacientava com qualquer coisa. Dei sinal para um dos carros da linha que poderia me levar de volta. Sinalizou que encostaria, mas seguiu adiante, como se nada. Irritei-me, mas relevei. A gente que aguardava comigo buscava também se irar contra aquela pequena injustiça, todavia, observando que eu relaxara, decepcionavam-se em silente raiva. Encaravam-me, claramente pensando: mas, também, com essa postura mole.
Como era de se esperar, demorou a vir outro metropolitano, e as pessoas agora aprofundavam suas discussões. Informavam-se uns aos outros sobre as empresas de transporte, as incendiárias greves dos metroviários e a invalidade geral da classe política. Gradualmente, voltavam-se à realidade presente e à situação do dia, calculando complexas rotas alternativas que envolviam longos trajetos a pé ou encarecidos ubers. No fim, apenas aguardavam. O Fernando, meu amigo, uma vez me disse que o bom do ônibus não ter chegado é que significa que ele está a caminho. Tive a impressão que se dissesse algo assim, ali, seria solenemente ignorado, ou mesmo rechaçado. Nas bocas e nos ouvidos: apenas queixas. E mais queixas.
NOME Marco Antônio de Castro e Rui
CPF 547.963.219-87
RG MG - 13.329.484
Endereço Rua S…, 267…
IPVA segunda parcela de 2021
CNH VENCIDA
fernando.
Eu não veria Fernando no dia do acidente. Estava desde a manhã com essa garota, Sofia, e à tarde haveria um evento de rap que ele ia participar. Acabei indo. Na volta, levei-o até sua casa, e me pediu para que ficasse, comeríamos alguma coisa, acenderíamos um baseado, e meu pai ligou. Foi o dia em que meu time ganhou, matematicamente, o seu segundo título de campeão brasileiro.
Em algum momento, lembrei-me do bloquinho de papel que Fernando reteve, prova de delito, indício de quem era Marco Antônio ou mesmo, quem sabe, o segredo que o transfigurava em extraordinário. Nas mãos de Fernando, apenas um artefato de um dia que ele esqueceria ao cair de uma cinza. Cheguei a perguntar para ele do caderno, ao que respondia:
— Ta aqui, olha. Espera aí — e passava vários minutos investigando gavetas de seu quarto que continham coisas e mais coisas, chaveiros, fragmentos de plástico, papéis, canetas… conteúdos tão densos em corpo que desanimavam qualquer busca. Então nos distraíamos, ele mudava de assunto. Eu topava, e já esquecíamos daquele problema. No fundo, eu ressentia. Pensava, paranoico, que Fernando não queria que eu me desse bem no desenrolar daquele processo. Isso me angustiava e me deixava ansioso sobremaneira, provocando-me uma aguda dor no estômago, até que eu ficava sóbrio, vivia outras coisas — e mais no fundo eu não queria lidar com aquele acidente. Nunca mais.
carona.
Passei a ir de carona para faculdade com um sujeito chamado Mauricio. Acabara de descobrir que morava no meu bairro e cursava engenharia. Era um lunático no seu Gol quatro portas, mesmo nos dias de chuva, não reconhecendo motoqueiros ou setas de caminhões em mudanças de faixa. Mas, de alguma forma, eu admirava Mauricio. Dirigia sem economizar espaços, em eficiência perfeita, o motorista modelo. Supus, em data desconhecida, o encontro último entre Mauricio e Marco Antônio, em novo carro comum, cometendo crimes comuns. Diante de tal patife, Mauricio se compadeceria de meu acidente, e deixaria de pensar que foi minha culpa, como todos pensam que foi, como todos pensam que é quando se escuta acerca de uma batida de carro.
Mauricio só escutava Jovem Pan. Na nossa ida à universidade, tocava o programa de músicas antigas, das canções pop de clipes exibidos na televisão nas décadas passadas, ou mesmo postados nos primórdios do YouTube. Em um intervalo, tocou o típico programa de trânsito, que toda emissora possui, mas, distinto de outras frequências, com vozes ao telefone de jornalistas em helicópteros, a Jovem Pan colocava a mesma locutora que anunciava os hits para anunciar os engarrafamentos. Naquele dia, além da avenida Teresa Cristina estar congestionada por excesso de fluxo, a mulher também anunciou: “a BR-381, na altura da Fiat, segue com grande engarrafamento após a colisão de uma carreta com um carro. Duas pessoas morreram!”, seu tom nasalizado, paulista, baladeiro no falar havia acabado de anunciar Umbrella da Rihanna. Não bastava, pois a seguir tocou a publicidade de uma seguradora de vida – imagine – com a mesma anunciante.
estádio.
Um sol, uma gente, duas cores. Mais tarde naqueles dias, fui ao estádio. Já fazia muito tempo. Após o título matemático de meu time, este jogo seria como os outros que o precederam desde a festa: um jogo, pragmaticamente, vago.
O sol atacava intenso Belo Horizonte, e as pessoas cobriam seus olhos. Havia um odor de urina misturado com o de suor e cerveja. Provinham de homens de troncos nus, de físicos comuns, que se retorciam ao evocar espirituosos palavrões — e muitos cantos, puxados pelas torcidas organizadas, seu anarquismo cultural – e dale bola rolando.
Fernando estava comigo. Era para ser um jogo casual. Comemos um brigadeiro antes de entrar no estádio, e agora tomávamos várias cervejas. Eu gostava de sua companhia, mas o sol me cegava, castigando minhas têmporas ao refletir em telas de celular e relógios contrafeitos. Provoca-me um arrependimento de estar ali, mas Fernando havia me chamado, eu fui. Eu não gosto de domingos.
O jogo começara morno, sem qualquer emoção, se não a natural de um estádio de futebol. Bolas chutadas contra o arco adversário, mesmo que errantes, arrancavam os uivos das galeras. Fazia um calor imenso, tanto que a verde e fresca grama parecia se amarelar ao passar dos segundos. Ansioso, voltei-me às pessoas, famílias que vinham ao estádio. Mulheres, bebês, meninas, moleques – a torcida se elevava, eu subi na cadeira para cantar e aplaudir. Fernando fazia o mesmo.
O intervalo veio sem agudas manifestações. No recomeço do segundo tempo, aos 15 minutos, um volante do time adversário impediu um contra-ataque puxando a camisa de nosso ponta. Indignação geral. O cartão amarelo, erguido aos céus, causou uma euforia voraz, sem que se esquecesse o fervor da recente revolta. O jogo prosseguiu, nosso tento amadureceu. Marcavam-se escanteios seguidos a nosso favor. O time adversário pouco ameaçava, mas, agora mesmo, arrumou uma falta boba, talvez inexistente, de longe, pingará na área. Um lançamento tão lento quanto os passos da humanidade, em uma bola que viajou em arco, fez com que subissem defensor e o atacante magrelo do outro time. A bola, renascida, fez escala num quique, dividida com nosso pitbull, e, na zona morta do goleiro, entrou sem qualquer ânimo. Os zagueiros, em violência, trombaram-se, bicando a bola para longe – já era tarde: um gol que nem sequer mexeu as redes. Comemorou em verde o outro time, sob uivos e ameaças de chinelos – copos de cerveja e isqueiros, enquanto celebravam bem em frente ao nosso setor.
aurélio.
O calor exasperava e aturdia. A torcida cantava intensamente, buscando o empate naquele jogo fútil. Os cantos, interrompidos pelas falhas do plantel, alternavam-se entre frustradas interjeições e o rápido retorno a um tom abafado. Rapidamente, já eram 30 minutos. Foi quando ouvi um grito atrás de mim:
— Ô Marco! Aí Marco! Já era, velho. Já era.
Por alguns segundos, segui atento aos movimentos da bola, até que algo recolheu de minha memória aquele grito. Retive: Marco? Despertei e procurei, sob o calor insuportável, quem havia chamado, e ninguém se destacava entre 4 ou 6 pessoas, entre homens e algumas meninas, imediatamente atrás de mim. No mais, cadeiras vazias. Busquei Marco, inutilmente, não sabendo como o distinguiria sem nem ter ouvido a sua voz. Pensei gritá-lo, mas me acovardei. Meus dedos formigavam, agitava-me, ansioso por todo estômago. Segundos feitos de nada, até um rapaz descer as fileiras dizendo “Marco”, pensei ouvir, com seu celular em mãos. Parou ao lado de um homem de costas para mim, de cabelos pretos recém-cortados, raspados na parte de baixo. Ele mostrou a esse homem algo no celular e sussurrou em seu ouvido. Acenou. Marco. Saiu dali, em passos rápidos, por entre a multidão em pé e polvorosa. Disparei-me, pedia licença, trombava, enquanto o jogo seguia tortuoso e ingrato. Já deviam ser 42 minutos da segunda etapa. Marco desceu as arquibancadas caminhando fluido por entre a gente, enquanto eu perdia o fôlego, o prumo e o resto de minha consciência, sem ter nada que se assemelhasse a uma ideia do que fazer ao interpelá-lo.
Já nos corredores de bares e comidas, onde a gente se distraía da peleja, a fila do banheiro era extensa e um forte cheiro exalava dali. Marco seguia, e eu não podia ver seu rosto, apenas passando pela multidão – subindo ele para outra parte do setor que adquirira, como eu – como num sonho: um soco falha, um grito fica. Ali, os sons se refletiam de distinto modo, rebatendo em mim com um impacto atordoante. Disputava-se imbecilmente em porções do campo, distantes de qualquer ameaça do gol adversário. Foi quando voltei meus olhos em busca de Marco – e ali ele estava, aquele rato. Urinava no muro que dividia aquele setor com seu anexo. Aproximei-me, e ele ergueu a cabeça, escutando meus passos atrás de si. Notei que seu rosto estava pintado, e, trêmulo, o chamei:
— Marco Antônio
— Aurélio – corrigiu-me, e todo estádio evocou em coro um alívio, um contentamento, após Marco se virar para mim. Um raio de sol me cegou brevemente. Não era o sentimento após um gol, mas uma excitação religiosa, de um êxtase arrebatador, sufocante, de quem concebia satã. No lugar onde Marco teria um rosto, apenas havia xadrez, em grandes quadrados. Não havia sinal de olhos, nariz ou boca — apenas ouvidos. Como se me mirasse, seguiu virado para mim – até que terminou de urinar.
focus.
Eu pulei o muro e vi Fernando agachado, como uma mancha escura naquele quintal. De grama, apenas, este se alongava em longitude. Havia uma grande garagem, aberta, mas sem comportar nenhum carro – que dizer do Cobalt. Rendi Fernando e atravessamos a noite em direção à grande mansão. Perfeitamente calados, abrimos a porta com facilidade e tudo era escuro no enorme lar. Ouvia-se a geladeira em seus murmúrios, avançando pela copa, agregada à cozinha. Entendemos aqueles cômodos, e, sem uma palavra, seguimos até o lance de escadas de granito. Pareciam ser o granito e o mármore os únicos materiais disponíveis para a edificação daquela casa, mas pinturas genéricas davam ao local um ar de recepção de um dentista.
Ao terminar o lance, tive vertigem. Fernando continuou, e, mesmo tonto, pisei junto aos seus passos em cópias de seus movimentos. Fora da casa, era impossível adivinhar a dimensão que agora se revelava, não de riqueza, mas de espaço, por enormes corredores que poderiam conceber esquinas e pés direitos que comportariam gigantes. E os tetos eram xadrez, como o rosto do homônimo Marco. Premeditados, percorremos o corredor principal até uma recém-colocada porta de mogno, onde paramos por alguns segundos. Então, Fernando a abriu, e eu entrei primeiro. Depois que ele atravessou o marco, a porta se fechou atrás de nós, encerrando, enfim, um denso tom de escuridão.
fim.
— Quem bola acende – disse Fernando após inspecionar meu baseado. De volta a sua casa, em sua varanda, viam-se os fundos de um condomínio da MRV. Um sensível sol nascente tentava tornar belos os brancos prédios. O baseado trocava de mãos enquanto eu pensava no Focus. Sairia caríssima a franquia do seguro.
— Maninho, deixe eu te contar uma coisa – então disse a Fernando – eu sempre esqueci de alinhar essa história com você, mas agora tanto faz. Sabe aquela batida que já tinha no carro antes? A história oficial, pro meu pai, era que eu tinha esbarrado o carro no poste aqui da rua, ao sair daqui uma noite. A verdade é que eu bati saindo do motel com a Sofia. Foi um aperto. Ela quis porque quis comer o jantar do lugar lá e não deu outra: revirou-se de dor e se exilou no banheiro. Quando abriu a porta o cheiro era terrível e ela queria ir embora. E eu tava meio bêbado, maninho, mas não a ponto de capotar o carro… eu acho. Você sabe como é lá, a entrada é ruim e a saída pior ainda, tudo apertado por umas muretas de cimento pra caber às margens da via expressa. Aí naquela frustração virei o carro sem olhar a traseira – não deu outra – se prendeu na mureta. Piorei tudo porque eu desesperei, sem querer sair do carro, só sumir dali. A Sofia fazendo uma careta. A porteira do motel pediu que eu saísse pela saída, aí eu reparei que estava na entrada – e ela foi até gentil. Saí do carro, vi que era uma manobra tranquila, e fui embora. Por isso tinha aquela marca lá, não sei se você viu, antes de capotar – esperei que Fernando risse, mas, antes de qualquer reação, meu telefone tocou. Era meu pai, mas, ao atender, outra voz soou:
— Filho – minha mãe – seu pai está no Hospital.
Então, Fernando começou a desaparecer. A um vento da manhã, desintegrava lentamente. O sol nos tocava, e o baseado, desprendendo seu traço no ar, caiu de suas mãos transparentes até o solo. Logo, todo o seu corpo se foi em partículas, e eu recolhi o cigarro do chão por varrer, apagando-o com saliva e guardando-o para mais tarde. Fora de sua casa, já em direção ao ponto de ônibus, reparei em onde sempre parava o carro, nos fundos do depósito de construção. O matagal, a essa hora azul, encarava-me de volta. Segui em direção ao ponto, onde me sentei no banco metálico e verde, onde, distraidamente, pude concluir:
— Doideira.
Quase um mês depois, em uma larga avenida, eu me aproximava a pé da oficina do seguro. Ele estava pronto. Nem bem surgia a entrada, após os muros, o Focus se encontrava à porta, imponente. Esperava-me sobre suas rodas, por elas, ele, eu. Senti curado meu estômago, minha pele, minha vontade de sair. Eramos um carro de prata e veias. Entendimentos. Cuidei da documentação, e paguei o que era devido com o cartão de meu pai.
Dirigi-o até minha casa sob um sol de veraneio. A rádio, na Brasileiríssima, tocava Bye Bye Brasil.
Luiz de Andrade é mineiro natural de Contagem, onde foi premiado no concurso Movimenta Literatura pela obra Arranques - 6 poemas em movimento, ainda por ser publicada. Atualmente, dedica-se à escrita de seu segundo livro, uma coletânea de contos, histórias que giram em torno do urbano e do campo de afetos, de homens e mulheres, da cidade metropolitana em que vive. Também é tradutor do espanhol e estudante de Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais.
@andradeluiz