Poeta é substantivo feminino
a poeta escreve. sonha que escreve como sonha um mundo melhor. a poeta solta a mão para pegar embalo no voo da flor. a poeta escreve como quem ousa. ousa como quem constrói uma casa tijolo a tijolo. a poeta olha o horizonte. escrever às vezes pode ser uma palavra vaga m-u–i-t-o-v-a-g-a como desbravar uma mata fechada com a força afiada de uma palavra.
já não são necessárias ferramentas cortantes além do lápis que pressiona o papel do dedo que pressiona a tecla da língua que pressiona a palavra no céu da boca a poeta escreve escreve escreve a poeta lê escreve escreve escreve
a poeta olha para o azul do céu. o raio de sol ofusca a visão. mas não da poeta. uma poeta que publica já subiu tantos degraus quanto uma borboleta que atravessou a cidade. a florada dos limões se aproxima. dizem que a natureza é inteligente e que os limões nascem no outono porque é quando precisamos.
a poesia nunca é igual mesmo que se reescreva reescreva reescreva a poesia habita alma habita terra habita a poeta escreve escreve escreve porque quando menos se acha que precisa mais sabe que poesia é necessária m-u-i-to-u-r-g-e-n-t-e o horizonte é vasto como vasta é a poeta
* (referência à escritora Cecília Meireles)
eu não tinha essa voz de hoje,
assim fogo, assim céu, assim água
nem estes olhos que não se calam,
nem o lábio inflamável.
eu não tinha estas mãos que enraizam,
tão floridas e vivas e que abrigam a morte;
eu não tinha esta alma,
que rasga o céu como se fosse véu.
eu dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, nada fácil:
em que espelho não se vê que eu sou poeta?
não descansar até nomear as folhas as árvores todo verde de Eva*
(referência à escritora Eva Potiguara)
toda Eva escreve para dizer o que cala
desde que os anos nem Adão contava
toda pele de Eva é um mapa
que Adão insiste em colonizar
desde antes da terra ganhar nome
toda memória de Eva
é como rio que pulsa por cada canto do corpo
toda voz de Eva é sonho
das que já pisaram neste chão
das que ainda pisarão
toda voz de Eva que (re)nasce é
pesadelo
brado retumbante
na parte mais adentro da costela de Adão
Giana Guterres é escritora e produtora cultural, mestre em Comunicação pela UFPR. É autora de Eu, Passarinho, Como eu sobrevivi quando você trouxe o inverno para dentro de mim e editora da Revista Marcela, revista literária dedicada à publicação de autores do interior do Brasil. Também é idealizadora da Ocupação Literária, mediadora do Clube de Leitura Leia Mulheres Bagé e professora de escrita.
@giana.guterres