1 - da parede
mariposa silenciosa, avanço
hoje estou só porque quero
sou um inseto solitário
não posso me trair
não posso fingir
que não quero me trair
sentir outro cheiro
no meu cheiro
meu próprio cheiro
exalando perfumes
desconhecidos
no alvoroço de mim
insisto no pouso preciso
performance noturna
estática na parede da casa
não quero me mexer
mesmo em repouso
mantenho as asas bem abertas
avanço silenciosa
nunca abandono a letra
a palavra ilumina um instante incompleto
em desatenta intenção
entre a luz e a tigela d'água
a palavra me afoga
sem matar minha sede
2 - do terraço
às vezes acender um cigarrinho
um cigarrinho pra enfumaçar
um pouco as ideias
mas não muito, não muito
porque senão fica muito cinza
e eu gosto das minhas ideias
coloridas
eu gosto de ver as cores pulsando
e quando eu fumo um cigarrinho
só um pouquinho, uma vez por mês
eu consigo ver as cores assim
muito brilhantes
três da tarde a árvore
na frente da minha casa
ela fica assim num verde
que é o verde mais verde
e o céu o azul mais azul
e o telhado das casas
elas ficam num laranja
num terracota mais terracota
no telhado mais telhado que já vi
e as árvores lá fundo um verde escuro
o verde escuro mais verde escuro
que já vi também
de vez em quando eu gosto
de subir no terraço
e fumar um cigarrinho
mas só de vez em quando mesmo
só uma vez por mês, porque
já tenho muitos vícios
e eu não quero mais um
mas de vez em quando
é tão bom esfumaçar as ideias
o corpo mole
as cores
as cores mais cores
que eu já vi na minha vida
3 - da janela
dobro as palavras
os versos estão ali
atrás da árvore bichada
na frente da janela
solicitei a poda, fui negada
assim não dá pra escrever poesia
um latido insiste em dobrar
o canto do passarinho
guardar entre os galhos
da árvore bichada
não preciso me orientar pelo canto
mas o latido insiste como a náusea
como um corte que não vira palavra
mas refluxo
sobe uma letra, engulo
sobem mais uma, duas, três letras
engulo
uma palavra sobe
quase encosta o céu da boca
engulo
na gula vou logo metendo
mais passarinho na boca
eu sou um cão com asas
mantenho bem abertas
entuchada no diafragma
alguma coisa uiva
dilata o tempo em um, dois
três universos
não dá pra engolir
4 - do corpo
escutando Marília Garcia
eu vou dobrar a minha escuta
eu vou dobrar a minha escuta
e guardar num texto
e eu vou dobrar o meu texto
e guardar na minha escuta
mas que escuta é essa?
a escuta é a escuta do
do silêncio
mas que silêncio é esse?
o silêncio é som que faz
a fome na minha barriga
é a obra lá no fundo
é a buzina
hoje não tem passarinho no silêncio
tem cachorro latindo
tem avião, helicóptero
tem alguma coisa martelando outra coisa de metal
máquinas, tem muitas
máquinas no silêncio hoje
o silêncio parece que cada dia
é uma coisa
meu silêncio no trabalho é uma escuta
maquinando ruídos, estrondos, obras inteiras
meu silêncio pode ser
cara na tela
pode ser um sonho
meu silêncio pode ser
desconforto
mas se ele tivesse uma cor
se meu silêncio tivesse uma cor
ela seria o corpo