percurso veraneio
Borda, margem, beirada. De longe parece uma linha reta, definida. Uma espécie de limite, que atrai e repele igualmente. Se insistir, dá pra atravessar até lá, quem sabe. Ou talvez seja melhor conter a ansiedade e esperar. Devagar, ainda invisível, tem uma onda se formando. Não precisa antecipar a reação. Mas depende do tamanho da onda...
Sem perceber, ela se projeta sobre o guarda-corpo. Nem se incomoda com os cabelos invadindo a cara. Imagina uma onda enorme, crescendo em câmera absurdamente lenta, tomando proporções monstruosas. Parece mais que um aviso, parece um desastre. Imóvel, hipnotizada pelas dimensões incontroláveis da onda, enxerga apenas a elevação inevitável, capaz de derrubar tudo que encontre pela frente.
Ainda não.
Naquela direção, a praia estava vazia, cinza. Toda uma ampla faixa de areia de trajeto da água por vir. Lá fora, as luzes das grandes embarcações começavam a se acender. Ela se desvencilhou dos pensamentos sombrios exagerados retomando todas as alusões a corpos celestes, faróis e objetos voadores não identificados que a infância produzira com maestria diante daquela mesma vista. Merecia um sorriso. E antes que ela pudesse mirar de novo a parte que não podia distinguir muito bem, alguém chamou.
Aquela jornada tinha um ar meio fantástico, quase irreal. Regressar à fase mais remota, só que no corpo que se tornara. Quem surpreenderia quem? Se tivesse sorte, seria um afundar na memória pra acertar os próximos passos.
Fazia muito tempo que não entrava ali. As recordações que sobravam eram fragmentos que misturavam as lembranças com fotos, relatos alheios e cenas de filmes, e as reminiscências da estrutura da casa eram como a geografia impossível dos sonhos. De cara, ela não se deu conta de que essa imprecisão podia ser uma boa pista, uma inspiração.
Notou que as recordações incluíam corredores que afinal não existiam, quartos que já haviam parecido maiores, objetos que na verdade pertenciam a outros universos do passado. Mesmo com esses impactos diante dos cômodos, havia uma nostalgia que mantinha aquilo tudo no campo do pré-existente, na camada longínqua, porém calorosa, dos elementos formativos.
Ela chegava como visitante querida, ainda que não costumasse mais ver aquela família. Não haviam se acompanhado em seus caminhos. Reconheciam uns nos outros o que restava de outra época na fisionomia e nos trejeitos de agora, uma intimidade peculiar, estabelecida pela saudade específica que os unia, um elo de antigos vizinhos que se formava particularmente naquele encontro e que se afrouxaria em outro ambiente ou na presença de personagens externos.
Às vésperas do feriado de 15 de agosto, tinha esbarrado com uma mulher daquele grupo de quem se lembrava particularmente, apesar de não terem sido muito próximas. Elisa era mais velha, um dos focos da sua admiração na adolescência. Àquela altura, isso era até engraçado, seja pelas personalidades, seja porque na casa dos quarenta, os menos de dez anos de diferença pareciam irrelevantes.
Num rompante de sentimentalismo mútuo, foi feito e acolhido o convite. Não fosse pra sair na manhã seguinte, talvez ela não tivesse aceitado. Pode ter sido a carência causada pelo isolamento. Talvez compartilhassem das mesmas distorções saudosistas, ou da mesma falta de traquejo pra seguir adiante. Havia um vazio a preencher, nem que fosse na produção de uma ocasião com chances de ser artificial, constrangedora. As duas se despediram rápido, evitando que alguma pudesse mudar de ideia, agendando logo o horário da partida.
Ela aceitou o convite de Elisa também como parte de um período de tentativas de desbravamentos. Tentativas porque não tinha muito fôlego, ou porque às vezes perdiam a substância. Sentia ter perdido muita coisa. A parte que era provocada por aquela interação, o chamado, a viagem, era das poucas aparentemente impossíveis de perder. Queria testar.
O esboço de uma reflexão vira e mexe se repetia, vagava como um fantasma e, naquela fase de tanta solidão e estranhamentos, despertara agressivamente.
Todo o período entre a partida daquele lugar e o retorno improvisado fora, a grosso modo, a descoberta no gerúndio de que afinal não havia aquele vir a ser fabulado na infância, de uma conjunção perfeita entre tempo e espaço.
Décadas atrás, de noite, enquanto ouvia a maré se aproximando e olhava as sombras das folhas no teto, quase sem se dar conta, planejava possibilidades. Nessa hora de dormir, quando toda a casa silenciava pra se preparar pra outro dia vibrante, a quietude aguçava os pensamentos, uma curiosidade de futuro que vinha com emoção ambígua pelo desconhecido. O que partia da melancolia particular, secreta e profunda de criança e depois adolescente terminava sempre na tranquilidade do que ainda não aconteceu e que, portanto, pode reservar os caminhos mais harmoniosos.
Os anos foram apresentando traçados mais soturnos das ideias. As coisas mais banais haviam se encarregado de demonstrar que não iam chegar as certezas tranquilas. Se por acaso existisse a conjunção perfeita entre tempo e espaço, só poderia ter sido justamente ali, quando e onde a distração fazia tudo parecer começo, promessa.
No entanto, passadas tantas viradas da vida adulta, persistia uma ponta de desassossego, escondida por algum ensaio ingênuo de estabilidade, e lidar com isso poderia ser uma prisão ou uma nova fluência. Precisava escolher.
Talvez não compreendesse totalmente o que buscava, porém queria saber o que restava de bom daquela inocência, se ainda era capaz de rastrear aquele ponto de partida, não unicamente pra entender o que e como se esfacelou, mas também porque eventualmente esquecia como era a variação animadora do impulso da expectativa. Se tinha crescido ao redor daquela garota, devia haver algum pedaço menos cínico.
Então, sim, gostaria de rever aquela praia, onde talvez tivesse iniciado um aprendizado, ainda sem nome, sobre as potencialidades e movimentos do desejo.
No fim das contas, eram muitos pontos convincentes. Não haveria mais o burburinho de julho e ainda seria um recorte de verão. Além disso, seriam poucas pessoas na casa. Iria com Elisa, que estaria acompanhada da mãe, Isabel, e do irmão, Antônio. Naquela composição, não haveria o desespero de um simulacro de juventude, com lugares-comuns de pretensa diversão. Apostou que teria alguma chance de estar um pouco sozinha e experimentar outra vez o espaço, como tanto imaginara.
A duração do trajeto foi maior do que ela lembrava. Não apenas sua noção de distância se atualizara como tinha se tornado cada vez mais difícil escapar da profusão de carros. Houve silêncios e diálogos muito menos embaraçosos do que ela havia previsto, e não fizeram paradas desgastantes, deixando só pequenas compras pra chegada.
Os mercadinhos tinham mudado, a estrada tinha mudado, se estivesse sozinha, não teria certeza do caminho. Mas o muro baixo e encardido cheio de plantas parecia igual, também a cor do portão e do gradil, de um desenho que não se fazia mais.
Chegaram à casa no meio da manhã, céu aberto. Ela sentiu alguma coisa ao longo das costas, como se o corpo amolecesse de reconhecer a luminosidade característica. Baixou o rosto inibida, na fantasia de que aquele momento de distensão fosse um descuido que alguém pudesse perceber, evidenciando a fragilidade interior.
Gostou da manutenção imperfeita, de ver itens antiquados. Não se identificaria se estivesse tudo reformado, não queria saber o que aquele lugar se tornara, como era tudo aquilo no presente. Queria visitar como era antes, ver se era mesmo como idealizara, ver se ela mesma era ali o que havia interpretado da lembrança ou se tinha inventado. Tratava-se afinal de uma nada original viagem no tempo.
– Lembrou?
Ela estava parada no meio do quintal, absorta. Sorriu desconcertada:
– Devia estar pensando tão alto que tu me escutaste.
Não falou mais. Desviou o olhar ao longo do terreno, procurando algo mais simpático pra dizer e se distraiu contemplando Elisa silenciosamente. Elisa pertencia a um mundo totalmente diferente do dela, que parecia muito distante, mas ela conseguia apreciar aquela leveza que às vezes soara despreocupada em excesso e que agora ela entendia como uma boa estratégia.
E lá estava absorta de novo. Foi Elisa quem se comunicou outra vez:
– A gente trouxe umas comidas prontas pro almoço, pra pegar direto uma praia. Se quiseres deixar as coisas e descer com a gente, vai ser ótimo, mas se estiveres cansada, fica à vontade. O dia começou cedo, não foi? Mesmo assim, a gente vai, que a mamãe tá precisando desse solzinho.
Os donos da casa orientaram a distribuição dos quartos e deram privacidade pra que ela se instalasse. O bordado floral na parede, a estante de vime, a cadeira de canudos plásticos na área externa transmitiam uma sensação reconfortante de uma época já percorrida.
Experimentou uma satisfação sincera. Por um momento, tinha achado que errara ao aceitar o convite. Sabia o que vivenciava por dentro, mas não calculara que naquele contexto poderia se sentir exposta de um jeito intimidador. Felizmente, pensou nisso quando já não podia desistir da ida.
Acomodou algumas peças num cabide antigo e deu por encerrada a arrumação. Tirou as sandálias e pisou no assoalho, como se enfim chegasse.
O quarto ficava na lateral da casa, mas como o segundo andar era rodeado pela varanda, era possível chegar à vista da praia. Caminhou até lá pra lembrar onde estava e avaliar se teria vontade de se juntar aos demais. Viu as cadeiras listradas postas na areia úmida. A família conversava com a tranquilidade desatenta de quem está em casa.
A princípio, ela se empenhou em filtrar as novidades da paisagem, porém não se deixou imergir na tentação nostálgica. Admitiu pra si que poderia ter criado uma maneira de voltar, mesmo de passagem. Na verdade, agora era incompreensível nem ter cogitado anteriormente, ainda que na prática ela soubesse listar razões.
Como pôde se distanciar tanto? A pergunta era imensa e se abria em muitas.
Era necessário estar inteira. Resolveu descer e quando chegou ao portão, viu os amigos retornando. Buscaria estar presente pelo resto do dia.
Raios interrompendo o lusco-fusco, rumor da ventania, vozerio de crianças, mas não se vê ninguém. É o mesmo lugar, mas não aparecem pessoas, casas, nem a vegetação, só a areia, as pedras, a atmosfera nublada e a água quieta da maré baixa.
Na primeira noite, sonhou com pegadas malformadas na praia vazia e uma chuva apoteótica se armando no céu encoberto que ela amara desde sempre. Acordou lembrando de quando brincava até de noitinha com as outras crianças e a eletricidade deixava os cabelos de todos em pé, enquanto os pais gritavam pelos filhos e a tempestade ia começando a cair. A chuva era um acontecimento. Havia esse tom de perigo, de proibido, e algo de mistério da natureza.
Foi lá que desenvolveu certa crença nas águas, que não sabia explicar muito bem, também porque não precisava. Mesmo não sendo de acreditar em muita coisa, aprendera a observar ali outro tipo de ordem. Guardava pra si esse código que muitas vezes tinha propriedades calmantes, que andava adormecido e naquele momento vinha na lembrança com excitação de cheia.
Desdobra nesse canto da memória em que talvez alguma coisa ainda faça sentido. Reconhece o que seria a lucidez. Registra aquelas coordenadas.
Subitamente, ouviu a movimentação no térreo. Precisava levantar. Saiu do quarto e ainda se sentia na frequência da penumbra quando se deparou com Antônio na escada:
– Bom dia! Tá pronta pra ir pra Vila?
Ele tinha o jeito da irmã, só um pouco mais agitado. Como ela ficou calada, ele continuou, bem-humorado: – Estás lembrando?
Haviam combinado na véspera, ela recordou rapidamente.
– Sim, sim, claro!
– Ótimo! Em vinte minutos, que tal? A gente aproveita e toma café por lá!
Dadas as circunstâncias, seria indelicado negar a gentileza. Além do mais, ela nem saberia formular um motivo bom o suficiente pra não ir que não fosse o receio da decepção, nem tinha previsão de outra oportunidade de repetir aquele programa. Finalmente se sentiu desperta e se preparou pra sair.
No caminho, ela era puxada a uma esfera mais próxima a cada surpresa com as alterações no cenário. Conversaria com aquele homem sobre os filhos dele, tão desligados dali, sobre o preço do peixe e as casas que não existiam mais, sobre as farras que não compartilharam e os demais vizinhos que perderam de vista e sobre como era impressionante estarem juntos ali, naquela paisagem que agora dizia algo que ela quase não entendia, mas que eles faziam um esforço e tanto pra reconstituir, juntando os cacos desencontrados de cada um. E ela estaria ali enxergando detalhes extraordinários em tudo, porque, afinal, que coisa incrível, a improbabilidade daquele domingo.
O segundo dia correu como se ela não costumasse carregar por dentro um desconforto de inadequação. Talvez por isso um alerta tenha reaparecido em seguida, um lembrete da desconfiança de estar bem demais.
Num almoço que entrou pela tarde, Isabel, Elisa e Antônio contaram histórias antigas que ela não conhecia, também lembraram de episódios que todos passaram juntos, festas juninas, torneios improvisados, aniversários, acidentes. Lamentaram reciprocamente o próprio afastamento e falaram das tantas pessoas com quem juravam que conviveriam eternamente e que ninguém conseguia recuperar em que ponto exato tinham desaparecido. Mesmo que no fundo soubessem que provavelmente levariam outros muitos anos até o próximo reencontro fortuito, havia um aconchego naquela união temporária que sabiam compor e ela divagou sobre prolongar um pouco daquela serenidade.
Depois, cada um foi se encaminhando pra sesta e, antes de também subir, ela quis recolher um pouco da paisagem pra si, aquela luz amarela escancarada que ela tanto suspeitava que não existisse mais. No íntimo sabia que não era esse o caso, era só que estaria sempre em busca daquele seu ambiente original. Nunca nada se igualaria à importância de todos aqueles elementos combinados, então nunca seria tão bonito, transformador, total.
Era um choque tão comovente quanto perturbador que ela ainda pudesse ver tudo aquilo de perto, não só na abstração da lembrança que a cabeça traiçoeira às vezes embaçava.
Notou que gradualmente se espalhava por dentro o sombreado que conhecia tão bem, uma coreografia repetida difícil de interromper. Apressou a ida pro quarto, enquanto o sol ainda estava alto.
Não chegou a dormir, esperando o pôr-do-sol. Foi pela varanda até a vista da praia, caminhando com cuidado, como se o instante pudesse se quebrar.
Aquele quadro era uma cápsula que ela guardava, um refúgio interior que se tornara materialmente inacessível, ou assim ela havia delimitado, durante todos aqueles anos.
Ressurgia ali adiante na areia, com estímulos, contentamentos, falhas e lacunas, o que ela lembrava de infância, algo de precioso, seu próprio substrato. Supunha que ficara ali a melhor parte de si. Se mexesse naquele recanto, sabe-se lá o que poderia desmoronar, portanto, deixava em posição intocável.
E eis que estava de volta, num agora em que justamente se instalava a repetição de um ciclo exasperante. Cambaleando entre os desapontamentos, as incertezas, as urgências e a síndrome de impostora, retornava ao prenúncio do desconhecido. Se permitisse, tomaria ares de ultimato. Sentia a vertigem de tatear uma fronteira.
Borda, margem, beirada.
Talvez esperasse que aquele horizonte revelasse grandiosamente respostas, aquelas que desvaneceram com o avançar das idades. No entanto, diante da cena que prosseguia imperturbável, que por mais conhecida que fosse permanecia calada, a angústia ainda espreitava.
No cenário que compôs muito do léxico da imaginação, ela oscilava entre uma ameaça de abalo de fundações e a chance de reavivar a direção esmaecida.
Que bases teria pra flutuar?
Ouviu o volume das vozes crescendo. Isabel estava preparando o jantar, Elisa gritou que tomariam algo antes e colocou uma música. Queriam que ela descesse. Então, ela se despediu daquele céu particular de quase noite e desprendeu o olhar.
Pelas venezianas do quarto, dava pra perceber que era uma manhã irrecusável. Sempre tinha sido assim, o dia de ir embora tinha cores arrebatadoras.
Ela levantou cedo, ávida. Desceu, atravessou a casa, o quintal e foi até a praia. A maré alta chegava bem perto, quebrava num estrondo. O barulho provocava um entusiasmo familiar.
Não era ameaça, era embalo de arranjar percurso, ouvir instinto. De onde sopra essa memória? Pra onde?
Pelo menos por um relance, não havia tanto peso e ela podia ter um dia comum, não esmagador. Clareava uma ideia de futuro. Não era solução de calmaria definitiva – não tinha essa ilusão, sabia bem das próprias intempéries. Era só o suficiente imprescindível pra continuar, o essencial.
Deslizaria a partir dali.
A onda era realmente enorme. Por enquanto, passou.
Entra na água.
Ana Clara nasceu e vive em Belém, Pará. É cantora e compositora com um EP e dois álbuns lançados e graduada em Comunicação Social. Desde cedo, lê e escreve pra enxergar mais fundo. Tem textos publicados na coletânea “Trama das Águas” (Monomito Editorial, 2021) e no Dossiê Literamazônicas (2021). Mais informações aqui: linktr.ee/anaclara.nm.
@anaclara.nm