ESPELHO DO OUTRO
Ao acordar, meus olhos repousam no espelho de maquiagem do Inácio. Eu ainda estava naquela fase final do sono, em que a vida não existe tanto quanto os sonhos - ou, como era de meu costume, pesadelos - e o espelho dele estava ao meu lado na cama. "Tenho que me livrar disso antes que a faxineira da emissora chegue" penso, ainda incapaz de arquitetar maiores preocupações. O dia sequer havia começado, as neuroses podiam esperar. Distraído, prendo-me um pouco ao espelho fechado. Ele é cinza com detalhes vinho, bem discreto. "Discreto demais para alguém como Inácio Ramos", lembro de tê-lo provocado ontem, no início do encontro, "Primeiramente: Inácio não, meu bem; Hoje, sou Dread Scott apenas pra você. "
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-Segundamente, há duas pessoas em todo espelho: a que vê e a que é vista; uma não exclui a outra - Dred Scott voltava da cozinha com duas cervejas - assim como o cinza fosco não exclui o glitter desse delineado lindíssimo - ele passa uma garrafa ao companheiro, que pede para deixá-la ao lado da máquina datilográfica, a qual não chiava um "a" decente há algum tempo.
-Nosso patético capítulo da novela das sete nem terminou e tu ainda piora tudo com filosofia barata - faz uma pausa, como se procurasse pela palavra certa - É mole?
-Até parece que tem alguma coisa mole aqui - sorriem entre si - Se continuar se fechando assim, nem filosofia barata teus roteiros terão.
- Não te chamei aqui para falar de "bloqueio criativo" - se levantou e foi em direção ao companheiro - quero esquecer tudo isso contigo - passa a mão pela nuca de Dred Scott, apertando-lhe os cabelos. Ele recusa os avanços.
-É tudo o que somos, Rick? - sussurra, fitando a janela. Já havia se cansado de esperar pela resposta.
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Que dramático. Agora desperto, guardo o espelho no bolso, quero ter certeza de que a empregada contratada pros queridinhos da emissora não fique de fofocas que acabem no estúdio de filmagem. Na certa, seria demitido se descobrissem sobre mim, lá se vai um emprego fácil e seguro na escrita.
Sinto o corpo travado, então me espreguiço antes de levantar. Apesar das dores, no entanto, pareço ter dormido feito chumbo. "Seja lá como tenha terminado, a noite rendeu"
Minha mente, então, voa manhosa em direção ao set e sala de roteiro, as cenas um pouco mais importantes disputando espaço com as baboseiras que os produtores nos impõe… Inácio no meio disso tudo; ou, melhor dizendo, Dred Scott: o gringo afetado. Ainda não acredito que ele aceitou esse papel, tendo que falar com aquele sotaque americano ridículo até o fim da novela. "Que otário", rio descontraído enquanto procuro minhas pantufas com o pé. Elas não estavam lá, no entanto. Em seu lugar, havia apenas pegadas vermelhas que levavam à porta do quarto. Passo o dedo nelas. Era sangue, meio seco. Minha mão aparentemente estava suja também. Puxo o espelho do bolso e percebo que os enfeites vermelhos no plástico cinza eram, na verdade, manchas.
"O que aconteceu ontem?"
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-Qual é a diferença, Rick? - Dread Scott percorre os dedos pelo torso nu de Ricardo.
-Do que?
-Entre as duas pessoas que você vê no espelho?
-Ainda tá nessa?
-É que eu tava pensando, você guarda tanta coisa aí dentro…
-Tu sabe como a banda toca.
-...Não quero ajudar apenas a esquecer… quero que você extravase tudo isso.
-Vamo extravasar gostoso, então - Ricardo se lançou sobre o corpo do outro, que o afasta.
-Extravasar com palavras, homem.
-Não sou bom com palavras.
-Disse o escritor - ironizou. Ricardo, no entanto, não levou na brincadeira, virando o rosto - Sei que não é tão simples. Mas e se fosse? - Dred Scott levantou e trouxe algo de sua bolsa.
-Chiclete?
-Tá mais pra bala. É um novo queridinho da psiquiatria européia, o Cazuza trouxe pra mim. Você toma um e se aproxima do seu Eu interior. Além de ficar doidão.
-Tipo um soro da verdade afetivo?
-Em linhas gerais, sim.
-E por que eu deveria tomar?
-A genuidade também ajuda com bloqueio criativo. Deixou o Cazuza bem exagerado nas letras dele.
-Ta ta ta, já entendi. Eu só… tenho medo do que posso falar assim, tão livremente. Nunca fiz coisa do tipo.
-Gato, depois de uma dose dessas, duvido que você lembre qualquer coisa além do próprio nome amanhã de manhã. Só vai sobrar o alívio catártico. O que me diz, meu diretor? - Dredd ofereceu a droga com a mão estendida.
-Tudo no mundo começou com um sim - sorriu e pegou o narcótico.
-Olha só quem ficou filosófico - Dredd também tomou uma bala, mas a dele de fato era só chiclete. Os dois riram e voltaram a se agarrar.
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Os indícios no meu quarto apontavam para uma tragédia, óbvio, mas rezei todas as partes que lembrava do "pai nosso" enquanto me arrastava sobre o rastro de sangue que acabou no meio do apartamento. Mais uma vez, minha criação católica não ajudou em nada.
O corpo de Inácio, estirado no chão da minha sala.
Uma faca em seu peito, piscina de sangue abaixo dele.
Pensa, Ricardo, pensa, seu inútil. "O ideal seria lembrar", pensei, mas tudo parecia um borrão na minha mente.
Não posso ter certeza de que sou inocente. Quais seriam as possibilidades dele se esfaquear no próprio peito? O melhor a se fazer, por hora, é tirar o corpo do meio, botar na máquina de lavar ou algo assim.
Onde fica a máquina de lavar da minha casa? Espero que a faxineira se atrase.
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Ricardo se encontrava à deriva em um mundo de fragmentos, como se visse a si mesmo e o mundo através de uma câmera com lente trincada. De certa forma, aquilo parecia-lhe absurdamente normal
-Ainda não bateu - reclamou Ricardo.
-Aqui também não está fácil. Preciso ir ao banheiro.
A ausência de Dred Scott deixou um buraco maior que a cama com o cheiro do seu perfume envolto em sexo. Um cheiro tão característico que preenchia as brechas no espaço de Ricardo. Este, de tão aconchegado em suas partes separadas, esqueceu para onde o parceiro havia ido enquanto se perguntava de quem aquele cheiro reconfortante pertencia.
Era de Inácio, isso todos sabemos.
Eu, no entanto, vou ainda mais fundo: quem é Inácio?
Inácio Ramos contava apenas 10 anos quando manifestou decidida vocação musical. Seu pai, então, logo inscreveu-o na escola de música para rapazes dotados de sensibilidade artística. Mal sabiam eles que ao colocarem Inácio ali, entre vários rapazes dotados e sensíveis, apenas contribuíram para que o garoto descobrisse outra de sua paixão inata. Essa, todavia, não foi tão apreciada quanto aquela musical e Geraldo, seu pai, fez questão de deixar isso bem claro com palavras de afeto do tipo "eu vou te consertar". Como castigo, decidiu tirá-lo da música e…
-Pera, quem tá falando isso? - Ricardo me perguntou.
É o narrador. Quem mais seria?
-Que narrador?
O onisciente, imbecil. O cara se diz escritor e sequer reconhece um narrador. Talvez, por isso, escreva e dirija essas novelas medíocres. Isso e também por ter alguns parentes na produção. Enfim, onde parei? Ah, sim… Castigo. O pai era homofóbico, como de praxe, mas também era gananciosos: sabia que o filho tinha chance de ser uma estrela, só precisava estar sendo guiado pelo o que era certo, algo que fosse global aos valores da família - e aos valores da poupança também. Decidiram matriculá-lo na escola de teatro, agora também junto às garotas. Anos depois, bum, estreando a novela das 7 com o diretor e roteirista veterano Ricardo Assunção, o homem mais enrustido do Brasil.
Inácio ainda sente vontade de cantar, mas sabe ser um sonho morto. De certa forma, ele se sente bem consigo mesmo.
A tragédia do ator, por fim, foi nunca ter conseguido odiar o pai por tê-lo afastado de seus sonhos, pois estava muito ocupado buscando ser amado pelo velho. Aquele ímpeto de correção paterna, que aponta a direção da vida a ser seguida, era a única forma do pai demonstrar preocupação com o filho.
-Como você inventou essa baboseira?
Inácio te contou tudo isso em outras ocasiões. Você precisa prestar mais atenção nas pessoas, Ricardo. Tipo agora; ele está falando contigo.
-Mas não consigo escutá-lo.
Ih, é verdade, você está chapado. Bem, não estou disposto a narrar a voz dele. Vou fazer isso indiretamente enquanto eu e você discutimos algo mais urgente. Pode ser?
-Acho que sim. O que ele quer?
Disse algo sobre não aguentar mais guardar tudo sozinho e não entender como você faz isso.
-Clássica dele.
Pois é, disse que te ama e não vai passar mais nenhuma noite sem saber sua resposta.
-Eu amo de volta?
Não, mas devemos esconder, não queremos que ele vá embora.
-Que papo é esse de "nós"?
Porra, esqueci que tu tá drogado e não sabe mentir, ele tá em prantos aqui.
-Foda-se o Inácio, o que você realmente tem a ver comigo?
Você é burro ou só se finge? Nós somos a mesma pessoa. Bem, pelo menos eu sou aquela que você não quer ver no espelho.
-Por que você tá fazendo isso?
Para que tu conheças os teus demônios. Olha, Inácio está gritando conosco; disse que nunca mais vai nos ver e que vai contar para todos sobre o caso. Ele não se importa com mais nada. O que a gente faz?
-Ele também tá chapado, então não vai lembrar de nada disso amanhã. Quais demônios tenho que encarar? Só vejo um narrador prepontente, e nem isso vejo ao certo.
Inácio disse pra você largar a faca.
-Que faca?
Essa.
-Qual?
A que você encravou no peito dele duas vezes. Agora três. Quatro, cinco, seis… Bem, acho que deu para pegar o espírito da coisa.
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Para um passivo magrelo, Inácio é muito pesado. Não é a primeira vez que o carrego nos braços, mas, agora, ele não tá ajudando. Tenho vontade de mandá-lo se segurar direito, de dirigí-lo. Quão alto eu teria que gritar para que ele obedecesse dessa vez?
Eu viajava nessas ideias, quando alguém girou a chave na fechadura. Largo Inácio no chão e puxo a faca de seu peito, escondendo-a atrás de mim.
É eu ou ela.
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Admite, você gostou de tê-lo matado.
-Foi um acidente!
Isso sempre existiu dentro de ti, esse ímpeto de anular a si e ao outro. Por isso, Inácio te amava. A história de vocês não passa de uma piada psicanalítica. Toma aqui; olha a porra do espelho e me diz: o que você vê?
-Eu não sei.
Tudo o que sempre te faltou foi auto reconhecimento, Ricardo. Olha direito e responde: o que você é?
-Eu… eu sou um ser humano horrível.
Viu? Não foi tão difícil assim. Aqui, toma a palavra para você.
Enquanto Ricardo cambaleava de volta à cama, eu sumi.
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-Sr. Ricardo? - A faxineira olha a cena num silêncio dedutor. Deduzo, aqui, quantos passos deveria dar para esfaqueá-la, o punhal quase furando minha mão tensionada. Segundos decorrem entre pequenas eternidades na minha sala calada - Vou usar o tapete do seu quarto, aquele grande, e já desço pra comprar mais alvejante. Quando acabar, ligo pro motorista, o seu Rui, pra pegar o corpo aqui em cima - ela tranca a porta sem pressa alguma - Agora, o Sr. quer ovos mexidos ou omelete pro café? - Meu rosto deve dispensar deduções para se saber confuso, e ela continua - A equipe de limpeza da emissora é preparada para todo serviço de… limpeza. Confie em mim, isso é mais comum do que parece. Mas é uma pena, eu me espocava de rir com o personagem do seu Inácio. Ninguém mandou se meter com gente errada, né? - Ela volta o olhar no meu, agora levemente assustada - Mas sem ofensas, tá, Sr. Ricardo? Enfim, mexido ou omelete?
-Sim - é tudo que consigo articular. Ela revira os olhos e começa sua faxina.
Eu anotava ideias novas pro roteiro quando o motorista chegou. Ele sequer trocou olhares com a senhora passando pano em minha sala. Esse silêncio, de certa forma, me confortava. O espelho ainda estava comigo, entretanto, e isso não parecia certo.
-Ei, espera - chamei o homem que terminava de empacotar o rocambole de Inácio. Abri a peça para conferir. O vidro havia rachado ao meio, possivelmente por causa de alguma queda. Um pouco de sangue resvalara por ali, de forma que meus reflexos fragmentados uniam-se pelo sangue seco.
Ajeitei o cabelo e pus o espelho no saco de desova. Até que não estou tão ruim assim. Despreocupado, voltei ao sofá para escrever enquanto saboreio minha omelete, que estava uma delícia.
Davi de Paula Arrifano. Além do fato de ser fascinado pela escrita desde que aprendi a ler e estudar nossas letras em uma universidade do norte do país, região onde nasci, ainda não tenho muita coisa para contar. Sou apaixonado pelas obras do Leminski, Machado de Assis e Kafka, mesmo não conseguindo relaxar e caprichar bastante, não ser um autor póstumo e ter medo de baratas.
@Piconho