Uma Estrela Distante no Espaço
- Controle para Capitão James. Controle para Capitão James.
- Capitão James na escuta.
- Bem, hoje é seu dia, Capitão James. Cinco minutos para decolagem. Está pronto?
- Espere, deixe-me respirar uma última vez este ar da Terra... Ok, agora estou pronto.
- Daqui a três anos você estará respirando este mesmo ar de novo, Capitão James.
- Sempre confiante, Controle.
- Checou o selamento de ar do seu traje?
- Sim.
- Ingeriu suas pílulas?
- Sim.
- Assento ajustado em posição de decolagem?
- Sim.
- Foi já ao banheiro? Porque a decolagem não vai ser moleza, e eu te mato se sujar seu traje antes mesmo de entrar no espaço.
- Quem está falando, a Sala de Controle ou minha mãe?
- Considerarei isso como um sim.
- Sim, já fui ao banheiro...
- Foto de alguma namorada para sentir saudades durante a missão?
- Não, nenhuma. Estou solteiro.
- Ex-namorada então?
- Não.
- Alguma revista? Três anos é um longo tempo...
- Não posso ser um garoto certinho que não gosta desse tipo de coisa?
- Um astronauta certinho, eis algo inusitado.
- O que posso fazer, se estou esperando a pessoa certa aparecer...
- Está bem, está bem...
- O que?
- Vieram avisar que tudo o que estamos conversando agora está sendo ouvido por todos na Sala de Controle.
- Que ouçam.
- Você é bastante ousado, Capitão James.
- Se não fosse, não teria me tornado astronauta.
- E ainda diz que é certinho...
- “Tudo que disser pode e vai ser usado contra você”, hein?
- Enfim, um minuto para decolagem, Capitão James. Alguma última informação que queira saber?
- Sim. Qual o seu nome?
- Perdão?
- Bem, você é o responsável pela minha comunicação com a Terra. Vai ficar estranho te chamar apenas de Controle por três anos.
- Bom, não sei, pode ser que me substituam durante este tempo...
- Mas mesmo assim, pelo menos agora é você. Você parece ser um cara legal, e só quero saber então seu nome.
- Bem... Ok, meu nome é Leonard. Leonard MacDonald.
- Muito bem, vou te chamar de Leo. E Leo, pode me chamar de Jamie daqui por diante.
- Hum, está bem, Ca... Jamie.
- Ok, agora sim estou pronto.
- Bem a tempo. Dez segundos para decolagem, ligando motores... Nove... Oito... Sete...
***
- Ei, Leo.
- Hã?
- Leo, está aí?
- Jamie, aconteceu alguma coisa?
- Não, só queria conversar.
- Sarcasmo?
- Não, estou falando sério, só queria conversar.
- Você me acordou apenas para conversar?!
- Te acordei? Que horas são aí na base?
- São... Três e meia da manhã.
- Nossa, realmente perde-se a noção de tempo aqui no espaço!
- Você sabe que tem um relógio aí para isso, não?
- Sim, mas do que adianta se não consigo dormir?
- Não consegue? Por quê?
- Bem... Acho que é nervosismo.
- E por que está nervoso?
- Por que... Bem... Daqui a pouco parece que estarei além dos limites de comunicação instantânea com a sala de controle. Se eu dormir agora, quando acordar, isso que temos tido de um falar e o outro responder logo em seguida... Não vai ter mais. Vai ter tempos de espera. E eles vão ficar mais longos... E mais longos... E mais longos...
- Está com medo de algo acontecer e não conseguirmos te socorrer a tempo?
- Bem, não é só isso...
- O que é então?
- Bem, a verdade é que... Eu gosto de conversar com você, Leo. As vezes que entro em contato e você responde realmente me fazem bem. Você não faz ideia do quanto o espaço pode ser solitário...
- Eu te disse para trazer algumas revistas.
- Está vendo?
- Estou vendo o que?
- Isso! Você não é como aqueles chatos da sala de controle que às vezes entram em contato comigo.
- Ei, não fale assim deles, são meus colegas!
- Está bem, está bem, peço desculpa pra vocês, estão ouvindo?
- Não, não estão, estou sozinho aqui na sala de controle.
- Sério mesmo?
- Jamie, são três e meia da manhã! Só eu que sou obrigado a dormir aqui na sala de controle para caso aconteça algo com você!
- E se acontecer?
- Aí disparo o alarme e todos vem socorrer. Ninguém tem permissão para ficar a uma distância da sala de controle tão grande que não dê para em trinta segundos estar a postos.
- Entendi. Então ninguém está ouvindo o que falamos?
- Só eu.
- Posso então te perguntar uma coisa?
- Pode.
- Você me fala de foto de namorada, revista... Mas e você, não tem ninguém que fique brava por você passar dia e noite trabalhando?
- Não... Para falar a verdade, sempre me interessei mais por foguetes do que por mulheres. Essa coisa toda de fotos e revistas falo só para ser engraçado mesmo.
- Então que tal eu te fazer uma pequena proposta?
- Qual?
- Que tal se, daqui a três anos, quando eu voltar à Terra... A gente sair pra fazer alguma coisa? Só nós dois?
- Oh, hum... Bem, não sou muito de sair, mas também...
- Diga, o que foi?
- Bem... Falando assim, soa como se você estivesse me convidando para um encontro.
- Podemos chamar assim.
- Jamie!
- O que foi?
- Se você está sugerindo o que está sugerindo... Isso é pecado!
- Depende da sua religião.
- Sou de uma boa família católica!
- Ok, essa religião diz que é pecado. Mas ela também diz que há um Deus no céu, e alguns dias atrás atravessei ele e não vi nada.
- Isso é sacrilégio, seu pagão!
- Então que eu seja pagão, mas te direi uma coisa, Leo: o motivo pelo qual não trouxe nenhuma foto de namorada, como você falou, é porque nunca tive uma. Mulheres nunca me interessaram. Sendo sincero... Eu digo que você é meu amigo, mas sinto algo por você que vai além disso, nunca tinha me sentido assim antes... Leo... Você também se sente assim?
- Jamie... Eu... Ai, Deus tenha perdão de mim... Sim. Sinto isso também. Sim. Sim! Opa, não posso gritar assim.
- Então... A proposta que te fiz... Você topa?
- Sim, eu topo!
- Leo?
- Sim?
- Ah, você topou. Nossa! Acho que acabei de passar do limite da comunicação instantânea...
***
- Leo, quanto tempo está demorando para chegar agora?
- Quinze minutos, Jamie.
- Daqui a pouco poderemos conversar cada vez menos durante as madrugadas...
- Sim, estou triste por isso também. O jeito é ir falando coisas mais longas, não? Para ocupar a noite toda...
- Tem razão. Embora seja engraçado você falando sobre noite, sendo que aqui no espaço é noite o tempo todo. Aliás, se ainda estivermos vivos quando esse negócio de turismo espacial existir, bem que gostaria de te trazer para cá. Precisa ver como são as estrelas de onde estou as vendo.
- Agora você virou poeta, Jamie? Ou vai começar a cantar mais uma das canções que você compôs para mim? Faz tempo que você não canta uma nova, estou com saudades de ouvir você cantando.
- Tudo bem, Leo, não precisa mentir, eu sei que quando canto pareço com o meu tio Arnold berrando quando ficava bêbado. E a última vez você falou que alguém até acordou e veio ver o que estava acontecendo, não quero te causar problemas.
- Não precisa ser tão ruim consigo mesmo, eu gosto do jeito como você canta. Melhor que eu, posso te dizer. Lembro-me de uma vez quando criança em minha casa no campo que tive a ideia de cantar e uma das vacas que tínhamos achou que eu estava conversando com ela! Mas sim, fiquei assustado quando vieram aqui daquela outra vez. Ai, Jamie, por que tudo tem que ser tão complicado aqui na Terra? Estou gostando cada vez mais de você, mas toda vez que alguém olha pra mim fico com medo de a pessoa perceber alguma coisa e me julgar. Queria estar aí no espaço com você. Pelo menos no espaço podemos criar nossas próprias regras.
- Sim, sem tabus e olhares tortos, só nós dois e essa nave aqui. Também queria que você estivesse aqui. Aliás, tanto que quero te anunciar que o motivo pelo qual parei de compor músicas é porque descobri uma nova vocação: estou desenhando retratos seus, pelo que você me descreveu da sua aparência.
- Oh! Bem, espero que você esteja me desenhando mais magro do que realmente sou. Ou pensando bem, me desenhe bem gordo, assim quando me vir pessoalmente vou estar mais magro do que você imaginava.
- Não, prefiro imaginar você mais em forma. Está bem, está bem, brincadeirinha. Falando a verdade, acho que não me importo tanto com qualquer que seja sua aparência. Gosto de você por quem você é, não como você é. Mas de qualquer forma, um pouco de exercício não faz mal a ninguém.
- Sempre ousado, Jamie, sempre ousado.
- Oh, você não tem ideia, Leo. Dá tempo de eu dizer algo ainda mais ousado?
- Falta ainda uma hora para o turno da manhã começar, diga.
***
- Vejamos, uma hora de ida mais uma de volta, dá duas horas. Dá tempo para cada um mandar o que, três ou quatro mensagens? Vejamos o que dá pra falar... Esse é o problema de estar sozinho no espaço, não tem nenhuma fofoca que eu possa te contar. Não é como se eu pudesse te dizer “Ei, adivinha só, Júpiter está esperando uma nova lua!” ou “Preciso te contar do anel novo de Saturno!”. Tem as conversas técnicas, mas isso já estamos cansados de fazer durante o dia enquanto todo mundo está aí olhando. E dá pra eu te dizer “Eu te amo” mais uma vez, mas isso já faço sempre. Dá também pra te contar alguma coisa do passado, mas... Nossa, mesmo sabendo que você só vai ouvir em uma hora consigo sentir como estou enchendo seu saco com isso tudo que estou te falando! Já sei, podemos falar do futuro, o que acha? Lembra que logo no começo falei de a gente sair para fazer alguma coisa quando eu voltar? Acabamos nunca combinando o que fazer. Alguma sugestão?
- Não se preocupe, Jamie, você nunca me enche o saco. Falando a verdade, acho até romântico quando você começa a divagar desse seu jeito. Fica parecendo um filósofo ermitão, desses que vão para longe de tudo para encontrar um sentido para a vida. Só que você foi para o espaço para isso. Não sei, tem certo romantismo imaginar você aí sozinho nessa vastidão, em busca dos mistérios que ainda restam à humanidade, e refletindo sobre todas as mínimas coisas da vida que você deixou aqui na Terra... Eventualmente fazendo um poema ou um retrato meu. Mas vou confessar, melhor seria se eu estivesse aí com você. Isso que estamos tendo de conversar a mundos de distância pode ser muito romântico no papel, mas na prática me dói que olha... Acredita até que esses dias passei mal de tanto que sentia sua falta? Desculpe não contar, não queria te preocupar, mas já passou. Ah, já estava eu próprio divagando e não respondendo sua pergunta! Ainda bem que perguntou, porque esse tempo todo que estivemos conversando me fez ter algumas boas ideias para o nosso... Ah, podemos chamar assim: nosso primeiro encontro. Deixe-me conta-las...
***
- Oi, Leo! Pelos meus cálculos, você só vai receber esta mensagem amanhã lá pelas cinco da manhã, então não vou deixa-la muito longa. Fiquei preocupado pelo que você disse de que suspeita que alguém sabe de nós. Está certo que o mundo já evoluiu bastante desde que começaram a mandar gente para o espaço, mas mesmo assim... Se alguém dos altos cargos tiver algum preconceito e resolver inventar uma desculpa para te demitir, eu fico louco! Só de pensar nisso me dá vontade de dar um soco em alguém, mas o único que daria pra dar um soco aqui nesta nave é em mim mesmo. Não, já decidi: se te demitirem, eu também me demito. Está certo que vou continuar nesta nave, mas não vou mandar mais nenhum relatório enquanto não ouvir tua voz de volta! Mas calma. Calma, Jamie, você está se exaltando. Respire, pense no sorriso do Leo... Pense no sorriso do Leo... Pronto, estou calmo. Vamos pensar de forma positiva, quem sabe ninguém suspeita de nada! E se suspeitar, quem sabe não seja alguém de má intenção! Vai dar tudo certo para nós, está bem, Leo? Mesmo aqui do espaço e com mais de um dia de atraso nas recepções, farei o que for possível por nós, está bem? E, ei Leo... Eu te amo. Só queria te dizer isso mais uma vez.
***
- Leo, essa foi a melhor notícia que você já me deu! Nem consigo acreditar, te parabenizaram mesmo?! Ai, Leo... Ai, meus olhos! Nossa, é muito estranho chorar na gravidade zero! Mas sim, são lágrimas de felicidade! Não acredito, finalmente não vou mais precisar ficar calculando que horas são para ver se te mando um relatório ou uma de nossas mensagens pessoais! Agora vou poder fazer os dois juntos! Isso... Isso é, é... Ai, cá estou chorando de novo que nem minha mãe quando me graduei. Agora entendo a felicidade dela. Leo, Leo, Leo... Agora está me dando ainda mais vontade de voltar logo para te... Espere, pelos meus cálculos... Vocês todos estão ouvindo isso, não? Acho que já tiveram uma dose suficiente de açúcar por hoje, não? Está bem, está bem, vamos ao que vocês querem, mas escutem bem! Vou dar então a minha meia hora de relatório, mas depois disso quem ainda estiver com os fones de ouvido ligados que não seja o Leo pode já encomendar o caixão para o dia da minha volta, entenderam?! Então, à parte sem graça...
***
- Jamie? Jamie, está me ouvindo? Eu sei que calculamos cerca de 72 horas para recebermos novo contato seu, mas mesmo considerando a margem de erro seu relatório está atrasado. Está tudo bem, Jamie? A equipe de controle notou também instabilidade nos seus circuitos, aconteceu alguma...
- Leo?
- Jamie?!
- Leo, estou fazendo de tudo para consertar as coisas aqui, mas... Temo que esta talvez seja minha última mensagem. Ainda estou tentando entender o que aconteceu, mas deu alguma pane geral na nave, tudo está parando e voltando, parando e voltando. Consegui finalmente fazer a comunicação voltar a funcionar, mas não sei por quanto tempo. Leo, eu... Eu acho que não conseguirei cumprir minha promessa de ir num encontro com você.
- Não, não!
- E se acontecer o pior, eu só quero antes te dizer mais uma vez que te amo muito. E... Eu sei que o que vou te pedir pode soar estranho e vai ser difícil de cumprir, mas... Siga em frente com sua vida. Chore o que for necessário, guarde essas conversas que tivemos, do mesmo jeito que irei guardar seus retratos por... Bem, um tempo muito longo, digamos. Mas por favor, pelo amor que tivemos durante este tempo todo, siga em frente com sua vida. Encontre alguém que te lembre de mim, e ame-o como me amou. E quem sabe assim, eu possa viver ainda dentro de você... E quando sentir saudade de mim, olhe para o céu e imagine que uma daquelas estrelas distantes no espaço sou eu. Estarei olhando na sua direção.
- Jamie! Jamie!
- Ai, adoraria fingir ser corajoso por você, Leo, mas não consigo mentir pra você nem numa situação dessas. Estou com medo, Leo. Medo de nunca chegar a te ver. Mas não vou deixar esse medo me paralisar. O sistema de sobrevivência da nave me mantém vivo por 60 horas mesmo que tudo o mais pare de funcionar, então não vou sequer dormir enquanto não tiver consertado alguma co...a. Dro...a, o si... a de comuni... á caindo de...
- Jamie!
- Leo, e... e a....
- Jamie, está ouvindo! Jamie, aqui é o Leo, está ouvindo? Jamie, se você receber esta mensagem, responda, por favor! Está me ouvindo, Jamie? Está me ouvindo, Jamie? Está me ouvindo Jamie? Está me ouvindo, Jamie? Jamie, por favor! Por favor, não faça isso comigo, Jamie! Jamie! Jamie, está ouvindo? Jamie, nem que eu tenha que ficar três dias repetindo isso até você ouvir, eu vou ficar! Está ouvindo Jamie? Está ouvindo, Jamie? Está ouvindo, Jamie? Está ouvindo, Jamie?
David Ehrlich é natural da cidade de Detmold, Alemanha, onde passou os primeiros dois anos de vida. Suas experiências mais importantes, porém, foram colhidas em Curitiba-PR, onde mora. Formado em Comunicação Social – Jornalismo (UFPR) e especializado em Narrativas Visuais (UTFPR), é fascinado pelo fantástico mundo das artes, e em especial a literatura, em que sente maior liberdade.
@davidehrlichbrasil