Patrícia
A pretensa crueldade atravessou Patrícia, mas ela a esmagou entre os dedos do pé. Como uma bailarina, repensou a atitude e pegou a crueldade novamente na mão esquerda: as patas coreografando uma dança esquisita. Patrícia nem ousou contar nada para a mãe. Nem a ninguém. Talvez nem fosse cruel.
Horas depois da descoberta, Patrícia foi até a dispensa, pegou uma caixinha de fósforos, jogou todos os palitos no lixo e tentou esconder o feito com uns papéis amassados por cima. Esse feito era o plantio de um mistério; ele, o outro mistério.
Levou a caixinha e ele para o quintal e os escondeu sobre o martelo e as chaves de fenda alaranjadas.
Uma jabuticaba refletia o andar de Patrícia até a casa. Entrou para o quarto, passou a chave na porta; sobre o travesseiro a cabeça dava sinais do desconhecido, martelando a imagem dele: forte e supostamente voador.
Duas horas depois, Patrícia abriu a porta com tanta avidez que quase atravessou-a como um fantasma. Estava de volta ao quintal. Caixinha aberta na palma da mão. O que é?
Continuava pasma. Dessa vez ele batia as asas — feitas de papel? Não era mais palhaço, talvez tivesse ensaiado aquela apresentação por anos.
Amigas vieram visitar Patrícia, mas sobre aquilo nem um pio emitiu. O tio, a quem confiava as histórias mais absurdas, nem de longe imaginaria a caixinha. Matias, então, quando fossem realmente próximos, quem sabe. O segredo se tornou dias e os dias se tornaram ainda mais secretos.
Larissa nunca beijou Matias – que fora estudar em Lisboa e passou a namorar uma tal de Andreia –; também guardou muitas cartas sem as enviar; pegou muitas vezes o 4403 somente para ler livros de ficção científica enquanto ia ao centro e retornava ao bairro; formou-se em Artes Visuais, com uma bolsa de pesquisa na qual se dedicou a estudar os diários de Paul Klee; sentou-se em pontos de ônibus sem que dividisse palavras com uma recente enamorada; esperou mais de três horas para ser atendida e mais de duas para que coletassem o seu sangue em um pronto-atendimento público; brigou com uma amiga próxima durante uma partida extensa de Catan; chorou com propagandas de banco e poemas ruins distribuídos por escritores na Praça da Liberdade; imaginou se casando com Dora e tendo três filhos e uma cadela de nome Paçoca; casou-se com Emília e tivera três gatos com nomes humanos: Pâmela, Amanda e Ptolomeu; teve uma crise de ansiedade induzida por THC; compôs três músicas e com elas um EP que só o Luan, amigo mais próximo disse ter gostado; mastigou pedras de gelo sem ter medo de que aquilo lhe fizesse mal; apresentou sua pesquisa de mestrado sobre diários artísticos para uma plateia dispersa; dançou forró durante a maioria dos sábados do ano em que sua vó morrera; separou-se de Dora, mas ficou com as plantas; teve um súbito prazer ao assistir a um jogo de futebol do Atlético Mineiro em um bar da avenida Amazonas; passou meses deprimida depois de entregar a dissertação; e, quando decidiu mais uma vez por aquilo, Patrícia já havia se tornado outras pessoas.
Os cabelos pretos ainda combinavam com os anéis, é verdade, e tanto os cabelos como os anéis também atravessaram o velho quintal naquela tarde.
Patrícia de pernas cruzadas sentou-se no chão com a caixinha entreaberta sobre o colo. Esse ficar ali se transformou em mais de trinta anos — e ele continuou, diferente de Patrícia, o mesmo. Alguns fios brancos do cabelo dela voavam e pousavam no chão preto de jabuticabas, fazendo riscos claros como os rascunhos de Paul Klee. Ela não olhava mais para ele, porque Patrícia se tornou o chão.
Diogo Aloni nasceu e vive em Belo Horizonte. É ficcionista e roteirista. Graduando de Cinema de Animação e Artes Digitais, pela UFMG. Publicou em 2017, o livro de contos “Quando o dinossauro cair do céu os meteoros serão extintos”, pela Penalux. Publicou também nas revistas Cupim e Chama, além de escrever crônicas e contos quinzenalmente na newsletter “As mais velhas histórias de amanhã”.
@alonimo