O ALENCAR QUEM ME CONTOU
São quase 23h e o entregador acabou de buzinar lá fora. Faz trinta minutos que eu pedi um jantar pelo aplicativo de entrega. Na primeira buzina, eu procuro as chaves. Na segunda, eu encontro. Na terceira, eu já estou abrindo o portão. O entregador tem pressa, há um imbricado de necessidades para além dessa entrega.
Do outro lado da rua, está a Cleonice, com uma camisola amassada e os olhos inchados. Cumprimento. Ela me responde, enquanto olha o entregador, o pedido e a forma de pagamento. Acompanha nossas ações com uma atenção conflitante a seu estado de sono. Entre um gesto e outro, olho na direção dela, mas ela desvia o rosto. Analisa com cuidado a rua e finge que também espera por alguém. Pego o pedido, pago e entro em casa. Quando estou fechando o portão, ouço o portão dela fechar também. Como eu supunha, a buzina aqui em frente era o motivo de seu aparecimento. Como ela poderia perder o anúncio da chegada de alguém tão tarde da noite?!
São de alerta todos os seus dias, mesmo que não tenha buzina ou entregador. Pela rua José de Alencar, não há quem passe despercebido pelos olhos e pelo crivo da Cleonice. Seus plantões começam no final da tarde. Primeiro, surgem as cadeiras. Uma ou duas, a depender do dia, três. Elas são verdes, feitas de plástico e têm apoio para os braços. São postas entre as 16 e 17 horas e servem para analisar as condições de temperatura. Se a sombra se estender depois dos limites da cadeira, o tempo já é chegado. O portão branco se abre e a Cleonice aparece, com um de seus vestidos estampados, de mangas curtas, que deixam aparecer os braços manchados pelo sol e os vincos do tempo. Ela senta e espera alguma amiga aparecer para ocupar a cadeira vaga.
Há sempre uma amiga específica por cada temporada. Atualmente, tem sido a Alzira, que sai, todos os dias, do bairro vizinho, para a interlocução ao pôr do sol. Quando ela chega, a cadeira verde já está a sua espera. Ela senta e a conversa começa com assuntos banais, uma intercorrência na hora do almoço: o botijão de gás que acabou, e elas seguem do preço do gás ao preço do arroz. Reclamam dos valores cobrados no mercado vizinho e inevitavelmente comentam sobre as pessoas que encontraram por lá.
Encontrar pessoas significa alimentar o tecido narrativo da calçada. Falam da Dona Raimunda, da Fransquinha e do Amauri. Uma mocinha passa e elas lhe destrincham a árvore genealógica, sob um juízo de valor, quase sempre, depreciativo. Às vezes ficam em silêncio, procurando assuntos na memória, enquanto esperam a próxima pessoa passar e lhes servir de mote para a conversa. Esse trabalho de coleta e de processamento de informações segue até o meio da noite, quando a Alzira se despede.
A Cleonice recolhe as cadeiras e fecha o portão. A partir desse momento, seu estado de alerta visual dá lugar à atenção auditiva. Independentemente da hora, o que lhe importa mesmo são os motivos e o seu trabalho não pode parar, por isso ela segue, e sempre seguirá, atenta a todo e qualquer chamado no portão alheio.
Hortência Siebra é natural de Itapipoca, no Ceará. Reside entre a capital, Fortaleza, e sua cidade natal. Possui graduação em letras/português, pela Universidade Federal do Ceará. Atualmente, divide-se entre os estudos e a escrita de contos e poesias. Autora dos livros: À margem do Impossível (2021), No sexto dia (2022) e O inverno à tarde (2023).
@hortenciasiebra