Tatarana
Algumas coisas que nos ocorrem nos preenchem, transbordam e nos transformam como a história que me ocorreu. Primeiro pensei em contar para alguém, mas ao repensar no que ocorreu, achei melhor não. Esse foi um daqueles tipos de eventos que você prefere guardar para si mesmo. Todo desanimo de fazer parte de uma família que mal te escuta agrega também a frustação de nunca ser ouvido. A primeira vez na minha vida que provavelmente iriam se interessar por algo que eu contei teria um súbito efeito negativo. Tal história ira ter a reação de milhares de perguntas e preocupações estupidas sobre drogas e constantes indicações de psicólogos a preços populares. Não contei nada para o Marcos também, ia ter um efeito parecido. Por isso, não gosto de ficar me explicando ou simplesmente não gosto de ser mal interpretado. Sem a oportunidade de esquecer o ocorrido senti a necessidade de pelo menos escrever sobre o fato.
Estudo no período noturno. Todos os dias pego o trem em um horário horrível para voltar para casa. Horrível pela escassez de trens e por ele ser parador. Tudo isso faz com que ele demore pelo menos duas luas para chega na estação. Outro fator que torna mais horripilante minha experiência com a estação é o fato dela ser bem vazia. Essa semana estava, na quase deserta estação, sentado em um banco qualquer. Olhava para a lua quase completa no céu e pensava em coisas aleatórias. Meio que de repente uma mão delicada tocou em meu joelho e fez meu coração saltar. Era uma garota mais ou menos da minha idade que sentara do meu lado e eu nem havia percebido. Ela possuía o cabelo comprido que parecia dançar com a leve brisa que soprava. Tinha a pele clara que brilhava com a luz da lua, olhos brilhantes e uma expressão entre risonha e culpada pela minha reação.
- Me-me desculpe - Ela falou me olhando preocupada – Te assustei? Desculpe me.... – Então encolheu os ombros.
- Mais ou menos... eh.… tudo bem. Apenas não te vi chegar. Você apareceu feito um fantasma. – Ri meio descontraído e ela ficou mais tranquila e relaxada.
- Me desculpe novamente... ia apenas te perguntar as horas.
- São dez horas da noite exatamente…e o trem está atrasado como sempre – Tentei sorrir para mostrar simpatia, mas pelo cansaço e chateação com o trem, o sorriso mais pareceu um sorriso amarelo.
- Hum... obrigada – Ela respondeu, deu de ombros de forma descontraída e começou a balançar as pernas e agir como se estivesse cantarolando uma música na sua própria cabeça. Talvez até estivesse. É bem provável que sim.
Era muito linda, mas me parecia meio estranha ou delirante. Não sei. Só sei que me simpatizei por ela. Mas achei melhor não incomodar.
Me voltei para os meus próprios pensamentos. Lembro que estava preocupado com trabalhos do fim do período, provas para as quais eu não conseguia estudar direito, as poucas horas de sono que ia conseguir naquela noite e o trabalho fatigante de telemarketing no dia seguinte. Não se passou 1 minuto e a mocinha voltou a falar comigo:
- Qual o sentido da vida?
- Oi? - Pisquei os olhos pasmo.
- O sentido. Qual o sentido da vida?
Por um momento quase respondi “42”. Mas ela provavelmente ia ficar mais confusa. A pergunta me foi feita de forma tão inocente e sincera que ela mais me pareceu, naquele instante, O pequeno príncipe do Antoine Saint-Exupéry. Então de forma surpresa eu tentei responder da melhor forma possível.
- Eh... sabe...? Não sei. Não sei direito. Muitas pessoas tentam até hoje descobrir a resposta pra isso. – Soltei um riso nervoso - Mas acho que o sentido é o que a gente quiser que seja. Cada um tem que buscar suas próprias motivações pra viver. Acho que o sentido está no que a gente quer na vida.
Ela então ponderou:
-Acho que não há sentido nenhum. Nascemos para simplesmente morrer. É isso... vivemos uma vida chata e no final de todo sofrimento terrestre nossa recompensa final é a morte. E nem quase sempre teremos a oportunidade de realizar todos os nossos sonhos antes de partir.
- Bem... ainda estou tentando. – Esbocei então um sorriso.
Ela então me sorriu e voltou a balançar os pés e dançar a música que tocava na sua própria cabeça. O trem demorava e a lua subia cada vez mais. Talvez tenha achado a pergunta um pouco inconveniente. Me sinto tão perdido... tão sem apoio. Não sei se estou no caminho certo. Não sei se estou vivendo. Pensei sobre o sentido da vida e o fato de um dia morrer como se nunca tivesse vivido... cair no esquecimento... até de mim mesmo. O desconhecido é tão assusta...
- Você acha que uma pessoa que se suicida vai para o céu ou pro inferno? Ou você acha que fica vagando por aí? Você acha errado alguém tirar a própria vida?
Fiquei olhando para os olhos dela buscando alguma outra reação escondida e durante esses 2 segundos não encontrei nada a não ser uma expectativa de resposta. Esbocei mais um sorriso, olhei para horizonte e respondi:
- Não sei se acredito em céu e inferno. E acredito muito menos nessa ideia de fantasmas vagantes- Ri- Isso sem dúvidas seria estranho. Todos nós vamos para algum lugar um dia.
- Mesmo?
-Acho que sim...
- Hum...- Murmurou de cabeça baixa balançando as pernas.
- Sobre suicidas: Eu não os julgo. Nem ninguém na verdade. Cada um é responsável pela própria vida... Só é uma lastima, pois é uma biblioteca que se queima. Todos que se vão são bibliotecas queimadas. Imagine o tanto de coisas que uma pessoa guarda em si. Experiências, histórias, lembranças, etc... Se uma pessoa se mata é mais
triste ainda. Ela se foi antes do tempo e mal pudemos aproveitar o tanto que ela tinha a oferecer e nem ela a nós.
- É verdade. Nunca havia pensado por esse ângulo. Não sei se concordo mas faz sentido. Acho que certas pessoas só não tiveram a oportunidade de conhecer pessoas certas.
- É uma pena né? Com o tempo fomos esquecendo de cuidar um dos outros. Também acho que, dentro de um todo, acabamos fazendo ações... ou deixamos de fazer... que influenciam em tudo. Quer dizer, eu podia não ter vindo estudar hoje, a gente não ia se esbarrar e talvez você precisasse dessa conversa. Ou não estaria falando comigo nessa estação deserta.
- Também tenho medo de ficar aqui. Além de estar sempre muito frio... mesmo no verão. – Ela puxou mais seu casaco para se proteger. - Mas prossiga.
- Bem, hoje um amigo não faltou. Ele me trouxe uma marmita. Significou muito para mim... nem sempre eu consigo fazer almoço ou janta porquê trabalho e estudo. Vivo comendo porcaria na rua. Uma hora a gente sente falta de comida de verdade. Se ele não estivesse nessa faculdade ou não existisse, dificilmente eu teria outra amizade aqui que me desse apoio. Não que fosse, de alguma forma, obrigação das pessoas, mas o Marcos tem esse tipo de sensibilidade e podia me ajudar. Aceitei de bom grado.
- Mas se estamos aqui só para servir ao coletivo, não passamos de joguetes do destino! Quando chega nossa vez de fazer o que realmente queremos? Ou o que sonhamos?
- Não era bem disso que estava falando. Estou dizendo que tentamos viver nossas vidas da melhor maneira possível trazendo sentido para elas. Mas, apesar de todas nossas limitações, tomamos atitudes e fazemos escolhas que vão influenciar nas nossas próprias vidas e no coletivo. Isso significa que nossas vidas não são vazias e insignificantes pois construímos propósitos conscientemente e inconscientemente.
A menina ficou me encarando. E não sabia exatamente se essa conversa estava virando “papo de bar”. Não sei toda a verdade (é claro). Tenho só crenças. Acho que se houvesse uma verdade absoluta poderíamos encerrar muitas pautas da escola de filosofia. De qualquer forma continuei minha linha simplória de raciocínio.
- Vamos lá! Um dia você decidiu andar por uma rua com muitas árvores e você e encontrou uma tatarana no chão.
- Tartarana?
- Não. Tatarana... ou taturana... Lagartas sabe?
- Ah!
- Daquelas bem grandonas que queimam quem encosta e as pessoas tem medo. Ela está se arrastando sofregamente e está mais exposta a pássaros e predadores. Você passou direto e ela morreu por causa de um predador ou por desidratação.
Ela olhou triste para mim.
- Bem, ok! Mas existe outra linha do tempo. Na qual você pegou uma das folhas caídas da arvore e colocou ela em um galho próximo das folhas. A partir disso, muitas coisas podem acontecer com essa tatarana, mas você aumentou muito as possibilidades dela de sobrevivência. Isso também foi escolha. – Ela dessa vez esboçou
um sorriso e olhou para o horizonte reflexiva. – Sabe, não é só sobre lagartas que eu estou falando. É um exemplo, mas pode servir para qualquer situação que nossas escolhas têm poder. Mesmo no universo micro das possibilidades que nós temos, muitas das vezes nossa escolha tem poder... mesmo que isso não nos afete diretamente. Eu podia não estar tento essa conversa com você por exemplo. Simplesmente por não me sentir confortável por falar com estranhos.
Ela olhou para mim preocupada.
- Desculpa....
- Não... tudo bem. Não é o caso. É um exemplo. Sabe...? até mesmo a lagarta tem poder. Vai que aquela que você ajudou vira uma linda mariposa ou borboleta e vai inspirar alguém? Vai ajudar na polinização do planeta... ou sei lá mais o que. E ela só está vivendo a vida dela dentro dos seus próprios sonhos de borboleta.
Ela soltou um riso tímido e ia falar mais alguma coisa, mas nesse momento o clarão e o barulho do trem afugentaram a escuridão e o silêncio. Nossos olhos acompanharam a vinda do trem.
- E nosso trem finalmente chegou - Falei ainda acompanhando o trem freando devagar e levantei do banco. Quando me virei para ela vi que estava sozinho. Procurei meio atônito em volta, mas não tinha como ela desaparecer do nada em tão curtos segundos. Fui alertado pelo som das portas prestes a se fechar e pulei dentro do trem
antes que perdesse o último. Olhei para estação vazia e no vagão anterior. Nada dela. Olhei mais uma vez - as pessoas já me encaravam de forma preocupada - e nada dela. Escolhi um lugar e não consegui pensar em mais nada.
Ainda não sei o que aconteceu direito. Talvez eu tenha imaginado tudo em um delírio à lá Walter Mitty. Talvez sonhado... Só sei que nunca saberei a verdade. Só sei que foi bem real e ainda reflito sobre a conversa. Às vezes minha mente tenta fazer ligações lógicas mas prefiro descarta-las.
J. F. Teixeira. Formado em licenciatura com habilitação em artes plásticas pela UFRJ. De 2015 a 2020 fiz a série de tirinhas para internet “O tal de Queijinho” onde falava sobre meu amor por literatura e sobre cotidiano e relacionamento que temos com nossos livros e histórias. Sou professor de quadrinhos e desenho no Instituto Beija Flor de Nilópolis. Já ilustrei para a editora Fly e atualmente tenho dois livros sendo trabalhados para publicação. “Bullyram comigo” da escritora Cristina Aragão e “A Pedra e a folha” do escritor e professor Guarnie. Além disso, tenho meus textos secretos que nunca tive coragem de publicar.
@j.f.teixeira00