Ana fora de órbita
Cinco e meia da tarde. As ruas da cidade começam a travar em pequenos congestionamentos nos bairros mais movimentados. Cidade do interior de São Paulo, com ruas estreitas e casas geminadas. Em uma delas, Ana toma um café recém-passado encostada na parede da cozinha. Olha para lugar nenhum, enquanto sente o cheiro da fumaça que sai da caneca fumegante. Suas unhas vermelhas estão roídas, mas os anéis adornam alguns dedos, conferindo modernidade ao descaso. Cantarola uma música brega qualquer e ri — um pouco de si mesma, um pouco da gata, Pagu, que brinca com o vasinho de suculenta há dias implorando por água e sol. Enquanto toma outro gole de café e acaricia Pagu, seu celular toca na sala. Ela não se move. O aparelho continua a tocar insistentemente, vencendo-a pelo cansaço. É surpreendida pela tensão palpável do outro lado:
— Está tudo bem, Ana? Aconteceu alguma coisa?
Não reconhece a voz.
— Quem fala?
Michele, a secretária da escola Santa Maria, pede para ela se apressar:
— Você está vinte minutos atrasada para pegar o Samuel. Ele está chorando.
Silêncio.
— Estou a caminho.
Ofegante, Ana manobra o carro na garagem apertada. Ela segue até o primeiro semáforo e para no sinal vermelho. Tenta controlar a respiração. Olha para o lado e encontra Eduardo no banco do passageiro. Ele sorri e parece mais novo do que realmente é com seu terno azul marinho engomado.
— Quando você vai fazer o ultrassom? Tô animado para saber o sexo.
O sinal abre e as buzinas nervosas soam atrás dela, que não sai do lugar.
— PASSA POR CIMA, SEUS MERDAS!
Ana tenta parar o carro numa das poucas vagas na rua. Lenta
estaciona.
Trêmula
rói as unhas.
Procura o endereço da escola no Google.
É a três quilômetros dali.
Desesperada, liga para a mãe.
Cada toque é uma pal pi ta ção.
Sua mãe não atende.
Apenas a voz mecânica solicita que deixe uma mensagem
após o sinal:
— Mãe, vai parecer loucura...
Mas responde mesmo assim
por favor.
Eu tenho filhos?
Eu tenho filhos?
Eu tenho um filho?
Porque me ligaram de uma escola
para buscar o Samuel.
Quem é Samuel
pelo amor de Deus?!
Me ajuda
tô enlouquecendo!
Ana coloca a mão na base da barriga.
Debaixo da camiseta da Janis Joplin
uma cicatriz. Áspera.
O sangue quente parece lodo parado na sua barriga flácida.
Fede a sujeira acumulada em inflamação.
Fede a pus antigo de ferida recorrente.
Ser mulher é uma ferida recorrente,
pensa.
— O que você fez, sua louca? — a voz de Eduardo ressoa no carro todo como o eco ensurdecedor de uma microfonia.
Parqueensolaradobolodeaniversáriosobreatoalhadepiqueniquecriançasgritamlogoali.
Uma criança grita dentro da barriga de Ana
pedindo socorro.
Ela tapa os ouvidos e reza
algum pedaço de uma oração nunca aprendida.
Na sala de hospital, a médica diz a Ana que vai ficar tudo bem.
Em casa, Ana enche uma bexiga azul, que estoura.
Um balanço do parque sobe e desce
vazio.
Dentro do carro, Ana respira fundo. As portas de enrolar de algumas lojas começam a ser fechadas. O ranger delas faz Ana se mover e colocar o endereço da escola no GPS. Ela dá partida no carro.
Show de rock lotado. Ana pula e grita, bebendo cerveja.
Torre Eiffel iluminada de noite.
Eduardo pede Ana em casamento num restaurante italiano.
Ana joga a aliança na privada e dá descarga.
Ondas quebram em uma praia vazia.
Uma criança tenta andar pela primeira vez.
Cai.
Ana para o carro diante da Escola Santa Maria. São seis e meia da tarde. A fachada da escola está vazia. O silêncio denuncia que todos já foram buscar seus filhos. É uma escola pequena de bairro, e no outdoor sobre o muro há três crianças sorridentes. Ela olha para o celular e não vê nenhuma mensagem da mãe. Procura, então, fotos de algum menino de uns 6 anos. Vê alguns de seus sobrinhos com os amiguinhos, mas não reconhece, em nenhum rosto, o seu filho. Coloca a mão novamente na base da barriga.
Última camada de pele puxada sobre a maca.
Sangue e gaze e sangue
Placenta.
Ana não desce do carro.
Dá a partida.
Chora alto.
Desliga.
Mão na ignição
trêmula.
O motor do carro soa como um Oráculo:
Na casa geminada, Pagu passeia pelo quarto decorado com papel de parede de selva. Leãozinho, zebra, girafa e onça compõem os animais divertidos. No teto, o sistema solar fluorescente garante a iluminação noturna. No chão, espalhados, desenhos infantis pintados com giz de cera.
Um choro insistente de bebê corta a noite silenciosa.
Carolina Lobo é sobrevivente de uma depressão pós-parto. Mestre em Artes da Cena, mora em Taubaté, onde já escreveu, produziu e dirigiu diversas obras teatrais e audiovisuais. Em 2019, venceu o prêmio "GatoLab" de melhor roteiro de curta-metragem no Cinefest Gato Preto. Com isso, fundou a Produtora de Cinema "Flor Filmes", com a qual dirigiu e editou o premiado "DUDA" - seu primeiro curta de terror, inspirado nos diários do seu puerpério.
@karolalobo