Eco buraco
Entrou na loja. Mirou aleatoriamente para os produtos e serviços oferecidos no local: fotografias. Olhou paredes de bebês sorridentes paralisados, jovens noivos erguendo buquês e taças paralisados, um homem dirigindo um Mustang azul paralisado, um jovem segurando uma guitarra prata, também paralisado e um cartaz com uma flor vermelha. Nunca soube dizer se flores exalam som. O fluxo de tudo acontecendo ao mesmo tempo, sempre se apresentou sereno, perfumado em total silêncio, este, habitante de seu corpo desde que nasceu enquanto carros, pássaros, pessoas, anúncios e apitos acontecem a todo momento pelas avenidas.
No balcão da loja, com as mãos repousadas, olhou para um pequeno espelho de borda laranja pendurado no canto. Viu o próprio rosto enquadrado. Arrumou as sobrancelhas. Olhou a placa foto 3x4 sai na hora.
Uma atendente se aproximou:
– Foto?
Leu os lábios dela. Acenou com a cabeça. Deu o primeiro suspiro. Voltou a olhar para a borda laranja do espelho. Ajeitou o cabelo.
– Por favor, sente-se de frente para a câmera e espere contar até três – pediu a atendente.
Olhou para uma menina que abriu um pacote de bombom sabor avelã.
– Ei! – gritou a atendente.
Olhou para a lenta rotação do ventilador de teto.
A atendente deu duas cutucadas em seu ombro o que fez girar na direção exata do toque:
– Senta ali, por favor – pediu enquanto calibrava o zoom da câmera.
Olhou para o rosto dela.
– Ali, por favor – repetiu.
Timidamente se dirigiu até a cadeira. Sentou ajeitando o quadril. Olhou novamente os lábios daquela mulher que dizia alguma coisa para a colega do balcão. A boca que mastigava palavras faladas lhe deu fome de saber qual era o barulho do dizer. Suspirou, sem saber que existe eco. A atendente acariciou o próprio queixo:
– Erga.
Prontamente imitou. Limpou alguma coisa invisível pela camisa, enrijeceu as costas, apontou o rosto para cima, desestabilizou os olhos, luz pulsante tomou conta da cara, viu que podia se levantar da cadeira e aguardou no balcão a foto ficar pronta.
Os silêncios, depositados nos sorrisos, nas pressas, organizado entre papéis, prateleiras, celulares, cadernos e cadeiras, possuíam vida própria. Silêncios pulsantes dos movimentos, silêncios nas perguntas e respostas sob o balcão da loja, reverberados em vácuos até a cerne de seus olhos, distraindo em fugas para o mundo próprio, local de permanente emudecimento dos outros.
Não ouvir a voz dos que diziam, acrescentava invisíveis tijolos rente a ponta dos pés, acumulados minuto a minuto. No fim do dia, a muralha no impenetrável do entendimento desabava sob seus ombros.
Debaixo dos invisíveis escombros de infinitos silêncios, o desejo em saber como é o som da chuva, o som do sol, a voz de um sim, como a voz chegava até o orifício da orelha, do nariz, na montanha do canal lacrimal, um sim que pudesse espalhar pelo sentido absoluto, veio com força. Na pressa de arrebentar a curiosidade, lembrou que alguém lhe disse que o microfone servia para ampliar a voz. Comprou um. A alegria levitava de coragem. Voltou para casa sem sentir vertigem com a luz da rua. Caminhou com sacola da compra presa ao punho e as mãos esquecidas entre os bolsos vazios. Pelas ruas pressentiu a fricção de braços contrários e a acidez dos bons humores que escorriam das calçadas. A poeira tocava parte do punho, quase totalmente imerso no bolso, mãos inteiras no quase vazio dos bolsos porque repousavam as chaves do apartamento.
No meio da sala de casa, de frente para o microfone ligado, abriu a boca, com toda a força, buscando na placenta do som a ressonância que matasse a fome de entender.
Com força e intensa sudorese, a boca pariu um grunhido. Algo caiu sem paraquedas. Ecoando na flacidez do rosto, absorvido por um estampido invisível, pigarreado em seco nas paredes da garganta, o ato arranhava o avesso da gêmea voz que não pode nascer, ejaculado por detrás do silêncio, efêmero estalo. Aparência de nada. Entre o ar das coisas sóbrias, mas não menos vividas, as paredes da casa guardaram o silencioso buraco de um eco que nunca foi sentido pelos trópicos.
Salma Soria (1986) escreveu os livros de contos Vestindo a roupa ouvindo a máquina (2021) e Muitas roupas aqui (2021). Vencedora do Rio de Contos, finalista do prêmio Off Flip, possui textos publicados em diversas revistas e antologias literárias brasileiras. Seu novo livro de poemas Formas dissimuladas de dizer bom dia (Patuá, 2023) recebeu menção honrosa no prêmio UFES de literatura. Salma é mestranda em filosofia e mora no Rio de Janeiro.
@salmasoria