JOANA ANGÉLICA
Ela tomou a mão de sua mãe e andou com o corpo agarrado às suas pernas. Era tanta gente, tantos ruídos e cheiros naquela rua que tinha medo de se desvencilhar da velha e nunca mais a encontrar.
A garotinha, que se chamava Angélica, filha de dona Joana, buscava entender o que justificava aquele inevitável fluxo colossal na Avenida que ligava sua casa à escola em que estudava. Ao longe, podia se ouvir um grave e distorcido alto falante a rugir.
- "e eu sou uma árvore búnitAaaAAa!!"
Alguém lhe topava os ombros num passo apressado.
- "Uma placa de ovos é 10 reais!"
Uma senhora conferia a qualidade dos morangos expostos num cesto improvisado bem ao lado da faixa de pedestres.
- "Uma penca de banana é $2!"
Jovens anunciavam, no mesmo tom e melodia, as correntes, pulseiras e relógios que vendiam.
-"Três por cinco!"
Uma mulher segurava uma placa, que a vestia do pescoço às coxas, com os dizeres: “Compro, troco e vendo OURO!!!”
- "Ótica do Povo, venha comprar sua armação!"
Dois garotos, desacompanhados, passavam correndo e fazendo hora com os transeuntes.
- "Pague 1 e leve 2!"
Um senhor, curvado pelo tempo, empurrava um mini-trio elétrico repleto de garrafas térmicas com café preto e com leite.
- "Vem me regar, mãe!"
Ônibus, carros, motos, vans, bicicletas, caminhões, viaturas e ambulâncias dividiam aquele corredor-baiano com o povo, lojas e barracas.
- "Qualquer peça é $10!"
Alguém parava sem avisar, bem à sua frente, para contemplar a vitrine ou usar o celular.
- "É 'inzame" ou consulta?"
Um pedinte, deitado sobre um pedaço úmido de papelão, erguia as mãos numa triste súplica.
Aquela orquestra não ensaiada de sons e acontecimentos causava na menina certo espanto, e ao mesmo tempo euforia e mistério. Sentia reverberar na pele do seu corpo miúdo os efeitos de um fenômeno que envolvia centenas, às vezes milhares de pessoas distintas, num mesmo espaço e momento, fazendo daquele Aqui e Agora uma experiência diferente e inesquecível. A intrigava o fato de ser, num só instante, observadora e partícipe daquela algazarra. Ou, como diria tia Alice, que é lá de Pernambuco, aquele buruçu danado.
Quando atravessava os portões da Escola Central era como se acessasse uma ilha, um porto seguro e alegre, de onde acenava para dona Joana que, como sabia, conseguiria se virar bem sozinha naquela babel soteropolitana. Angélica cumprimentava o porteiro, os colegas e ia viver seu dia na escola – não sem volta e meia ser acometida pelos efeitos daquele evento social recém experimentado, lançando sombras de suspense sobre a volta para casa.
Numa dessas aulas, aprendeu sobre os cinco sentidos que orientam a vida humana. Uma ficha rolou na sua cabecinha pensante. O passeio diário ativava imediatamente todos os seus cinco sentidos, a aventura era completa: envolvia o tato, o olfato, o paladar, a audição e a visão. Naquele pequeno percurso que liga o bairro de Nazaré ao Colégio Central, Joana e Angélica estavam demasiadamente vivas e assim se sentiam.
João Caetano é nascido em Salvador/BA e se criou entre navegações pela soterópolis, o reconcavo baiano e o Vale de Jiquiriçá. Antropólogo, Capoeira, compositor e cronista, há cerca de dez se dedica a pensar no mundo desde a música, a antropologia e a literatura - linguagens que dialogam em todas as facetas de sua obra. Atualmente, realiza um doutorado em Antropologia Social pelo PPGA/UFBA.
@jcaetanoba