distanciar-se do caos
e observar bem longe
a louça na pia da cozinha que despenca
um ar gelado do inverno de 1996
ano em que um avião colidiu
com dezenas de casas e sonhos
distanciar-se do inferno
como quem não se obriga
a ficar velando o corpo do irmão
já morto desde o início do ano
distanciar-se da inundação
como as ondas que se replicam
depois que uma pedra muito gasta se atira
nas águas mansas de um lago desconhecido
no coração do país
distanciar-se do precipício
como quem não se atina às espertezas do corpo
e tropeça na própria língua que se enrola
ao tentar defender o alarme que toca
na manhã de domingo
distanciar-se do perigo
engolir suavemente três palavras
das mais doces
e esperar que a carne se inunde
e se desnude na beira da cama de um hotel
no centro da cidade
distanciar-se do ruído
e lamber com a ponta dos olhos
a boca do leão
que ruge
Claudinei Sevegnani é artista e professor. Doutor em Artes Cênicas e Mestre em Dança pela Universidade Federal da Bahia. Bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Santa Catarina. Transita entre a dança, o teatro, as artes visuais e a literatura. Autor do livro Adelaide em terceira pessoa (Urutau, 2022).
@claudineisevegnani