O Festival de Primavera de Onde Judas Perdeu as Botas
Greta desperta às cinco da manhã com duas bolas amarelas flutuando sobre o peito. E, após segundos mascarados de anos, dá-se conta de que são os olhos de Cruel. Ela senta sobre a cama, Como seria bom se não houvesse Festival. Se Helena ficasse com a coroa. Se fossemos apenas nós os dois, fala para o gato, ajeitando-o sobre o colo. O animal estende as dianteiras, como se quisesse abraçá-la. Greta, escute: é preciso virar cinzas para voar; afogar a realidade é fantasia e eu nem estou mais aqui, diz o felino em vulto ao atravessar a parede do quarto.
É preciso encarar, fala para si ao encostar os pés no piso gelado, Mas quando essa gente vai me deixar em paz? Há uma década, desde os dezoito anos de idade, a repetição da primavera e a dispensa do trabalho na videolocadora. Entredentes, a mulher começa o ritual de maquiagem. Enfia o vestido rosa, a coroa na cabeça e a faixa desbotada de Miss Margarida do ano de 1990 no corpo, percorrendo ombro, seios e cintura. Na bolsa, joga os absorventes, o sorriso e a vodca. Então vai ao evento.
O Festival de Primavera é o grande acontecimento anual de Onde Judas Perdeu as Botas. Uma cidade com 15.521 habitantes, os quais se deleitam em cooperar uns com os outros, vinte e quatro horas por dia, incluindo conselhos, piadas e antidepressivos. A força da comunidade somente é testada durante o festival, quando os emigrantes retornam para as casas dos pais, tios e avós, triplicando a quantidade de gente nas ruas. A unidade dos Botinas que permaneceram, no entanto, continua igual corrente de ferro.
Hoje a Miss para o carro na frente do estacionamento do Festival com as mãos cravadas ao volante, pensando como seria se seu caminho não cruzasse com o de Cruel. Sujo, feio e com fome naquele mesmo lugar há dez anos. Ela não teria recebido a coroa.
Greta foi a única das coroadas do concurso que nunca emigrou, tornando-se uma espécie de patrimônio, de atração do Festival. A sua presença é tão necessária quanto as dos floricultores, da banda marcial ou do prato típico da região. A ela cabe participar do júri e coroar a beldade do ano, além de cumprimentar a todos, é claro, com simpatia e elegância, movidas a álcool e silêncios.
Mirando o teto do carro, ela imagina como seria se não existisse o ataque ao rosto de Helena, logo após o felino ser resgatado da rua. Como seria se Cruel, o único que sabia quem Greta era de verdade, não fosse encontrado, ontem, boiando na lagoa. Suscitando dúvidas: se foi acidente, maldade ou suicídio. Sim, até suicídio está sendo aventado. Há tempos nota-se, na cidade, uma onda de animais tirando as próprias vidas por não aguentarem as mesquinharias deste mundo. Então não foi surpresa para Greta quando o corpo do gato emergiu. O problema é que, além de não saber como seguir a vida sem o seu cúmplice, emergiu, também, Helena.
As duas tornaram-se amigas ainda na infância, Parecem gêmeas, todos comentavam. A dupla gostava de rosa, chocolate branco e panelinhas. Assim como sempre sonharam em ganhar o concurso de beleza da cidade. Essas e outras escolhas eram de Helena. E Greta seguia a trilha.
Não adianta imaginar outro caminho, preciso seguir, só por hoje, fala diante do espelho do retrovisor. Em vão. A música do evento não deixa. Madonna ecoa Vogue pelos ares. A melodia de Helena quando ganhou o Miss Margarida. E a da resignação de Greta. Saíram do Festival juntas. Precisavam comemorar a vitória. A verdadeira Miss na frente, a sombra atrás, sustentando o sorriso, com os ombros curvados para dentro, como asas de um anjo caído. Então quase tropeçou no gato. Tão parecido, tão igual a mim, pensou Greta que, automaticamente, levou o animal ao peito, Vem comigo, cuidarei de você, dizia ignorando Helena que a chamava para dentro do carro. Durante o trajeto, Greta rija, A coroa é para você, sempre foi, falava ao acariciar o felino. O animal não parava, cravou as unhas nas pernas de Greta, pulou em Helena, tirou-lhe a visão. A moça perdeu o controle, derramou lágrimas de sangue e deixou-se atingir pelo carro que veio pela lateral. Os jurados, à época, passaram coroa e faixa para Greta, afinal, a cidade precisava de uma Miss e, ao mesmo tempo, seria uma homenagem à memória de Helena.
O evento chama. Greta abre a garrafa de vodca, embebeda um absorvente e o enfia entre as pernas. Dirige-se ao camarim improvisado em um contêiner, para desejar sucesso às candidatas, quando tem vontade de mandá-las embora daquela farsa. Mas, surpresa, o lugar está vazio. Sem ter com quem conversar, procura a carteira de cigarros na bolsa, Desgraça, esqueci. Por trás da arara de roupas, surge uma criança descalça e vestido rosa, com um cigarro entre os dedos, Foi bom enquanto durou? Pergunta a infante com fumaça nos olhos. Helena é você? Indaga a adulta tirando a coroa da própria cabeça. Duvido ter coragem para acabar com tudo, Miss Margarida, diz a menina ao tirar o isqueiro do bolso e oferecê-lo para a mulher. Greta acende o fogo, encosta na barra do vestido rosa, Começamos por aqui?
A menina responde:
— Miau.
Anaí Bueno é natural da cidade do Rio Grande/RS, é leitora e escritora, formada em Direito, teve contos publicados em revistas literárias, participou de coletâneas de contos e de minicontos.
@bueno_anai