no caminho das ondas
Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Louise deu por si na cama transformada em sereia. Deitada sobre a cauda longa, úmida e dura que parecia metal, e ao levantar a cabeça seus longos cabelos molhados deixavam escorrer gotas de água salgada por sua barriga. O chão estava coberto de areia clara e os quadros da parede movimentavam-se lateralmente como siris fugindo dos pés de empolgados banhistas em dias de praia cheia. A lâmpada em meio ao ventilador mostrava uma luz amarela tão forte que era possível sentir os raios solares e o cheiro da maresia destacava-se, escondendo o odor de cidade.
Olhou para a escrivaninha ao lado da cama e seu antigo radio-relógio digital e seus números grandes e vermelhos parecia marcar oito e meia. Estava sem os óculos e o seu grau de miopia fazia com que ela praticamente adivinhasse o que via. Pegou os óculos embaixo do travesseiro e teve certeza de que dormira um pouco mais do que deveria. O despertador não tocou, estava atrasada. Deveria ter acordado a mais de duas horas. Isto nunca havia acontecido, Louise era regrada, responsável, e nunca faltara, mesmo nos dias em que estava doente.
Não havia sido um sono sossegado, mesmo assim deveria ter escutado o som do rádio. Se é que tocou.
O que faria agora? Sentia-se acordada e a cauda parecia ser de verdade, mesmo assim molhava as mãos espremendo o cabelo e passava no rosto, se realmente fosse sonho, acordaria. Era real, mas como? A sensação era de ter saído do mar há segundos.
A TV era a única coisa no quarto que se mantinha igual e ainda estava ligada, Louise dormia sempre com o barulho dos filmes e programas da madrugada. Sentia-se mais segura ao imaginar uma companhia, principalmente masculina. Os príncipes encantados...
As imagens de lindos cartões postais com pessoas em trajes de banho e principalmente, com semblantes de imensa felicidade passavam incessantemente naquela tela. O cenário com arco-íris no fundo, gaivotas dando rasantes na areia, crianças correndo soltas e alegres, e as ondas tombando ininterruptamente, liberava uma espécie de mensagem sem palavras, mas que mostrava o caminho em que todos deveriam ir. Todos pareciam seguir um trajeto certo, apenas a trilha de Louise deixava pegadas únicas. Sem par.
Era estranho olhar para a cauda, porém, nada desagradável, não passava pela cabeça a situação de ser uma espécie de peixe, tampouco a falta que fazia no trabalho. Se fosse tão necessária, teriam ligado. O que incomodou na mensagem televisiva foi a ideia de solidão, um presságio de um amanhã singular.
Mudanças nunca foram desejadas por ela, mantinha-se a mesma com hábitos e roteiro. Mesmo supermercado, padaria e banca de revistas, porém, naquele instante gostava do que via. As diferenças no ambiente lhe agradavam, nunca havia se sentido em casa e naquele momento parecia estar.
A sua intenção imediata era se levantar e entender melhor o que ocorria, mas mesmo fazendo muita força, o peso de seu corpo não permitia tal movimento. Precisaria de pernas para erguer-se; em seu lugar, tinha uma cauda escamosa e pesada que não cessava em bater na cama. De qualquer modo, dentre seus 38 anos de vida, sempre se sentiu como um peixe fora d’água. A metáfora tornara-se verdade.
Seu Habitat era a terra, sua fonte de respiração era o oxigênio e seu caminho era alinhado, sem passos para lados desconhecidos. Entretanto, nos últimos dias, sua organização mental uniu-se a seu corpo e juntos pediam socorro, seu mais profundo interior chorava e gritava, porém, o som não saia de sua boca. Sempre reprimida pelos próprios medos e desconfianças. Nunca soube o quão forte era, não imaginava o agudo de sua voz.
Sua vida era limitada a trabalhar, passar os fins de semana esparramada no sofá, ainda de pijama, comendo pipoca, assistindo o mesmo filme pela enésima vez e cuidar do seu peixe, seu único amigo e confidente. Os poucos relacionamentos nunca passaram de dois meses, o brilho de um amor nunca fora sentido. A vida fora desse contexto parecia seguir um ritmo dissonante do seu como se fosse uma peça que nunca encaixaria nesse quebra cabeça. Achava gostar de estar lá, não havia opções na sua ideia, não passava pela mente abrir os horizontes, conhecer pessoas que não fossem seus colegas de trabalho. Parecia não fazer falta.
Desde muito jovem carregava dificuldade em socialização com os outros seres humanos. Seus pais a adotaram após tê-la encontrado na praia, sozinha sem nenhuma informação. Nunca souberam explicar de onde ela teria vindo e também não procuraram os pais verdadeiros. Não era seu desejo.
Louise era humana, mas quando via o mar, sentia ser ali o seu lugar, talvez não dentro dele, mas perto. Precisava estar ali. Mantinha-se próxima, andando pela orla na volta do trabalho sem entender porque as pessoas eram tão felizes e qual a razão de estarem sempre juntas. Esperava algo que não sabia o que era, mas sabia que não era igual a todos os outros.
Adaptou-se a realidade imposta, era a única que conhecia, não era exclusividade dela, muitas pessoas também se sentiam deslocadas, sem conseguir entender a real razão por estar vivendo, ou sobrevivendo.
Ela? Sobrevivia, apenas isso.
Caindo em si e sabendo que não conseguiria levantar-se em função da cauda, relaxou o corpo e pôs-se a pensar e refletir sobre o que realmente estava acontecendo. Ao mesmo tempo, em que imaginava estar enlouquecendo dentro de um sonho bom, também cria estar perdendo a razão por conta dos traumas que ela mesma contraiu durante sua história. Sentia-se culpada por não ter mudado a direção, não lembra se teve oportunidades ou se não conseguia enxergá-las, o fato é que não saiu do mesmo lugar. Mesma casa que cresceu e herdou dos pais, mesmo trabalho, desde que se formou aos 18 anos, mesmo corte de cabelo e até o peixe era o mesmo.
O silêncio tomou conta do ambiente, o barulho das gaivotas cessou, as gargalhadas na praia silenciaram e o calor solar da lâmpada deu lugar ao vento morno e fraco do ventilador. Piter começou a fazer barulhos diferentes como se falasse em um idioma que Louise não conhecia. A verdade é que ele nunca havia feito som algum. O aquário estava borbulhando, até que ele parou e virou os grandes olhos para sua amiga.
Tudo silenciou.
Aquele olhar também diferia, sentia vontade de abraçá-lo. Lembrou ser a hora de alimentá-lo. Sua mente estava inquieta, sonhou ser uma sereia, escutou o peixe falar e principalmente: sentia-se feliz. Não lembrava de ter tido sensação parecida a essa, estava em êxtase, não acreditava em conto de fadas, sua vida era basicamente drama. Tudo isso junto só poderia ser uma crise de loucura.
— Preciso ir a um médico
Levantou-se naturalmente, suas pernas estavam normais e seu quarto voltara como era antes. Foi até o aquário, sua cabeça estava confusa, respirou fundo, pegou o pote de ração e jogou na água. Piter nadava lentamente em volta de seu lar, batendo nas paredes de vidro como se implorasse liberdade. Ela bateu com a ponta dos dedos no aquário e ele veio a seu encontro, abandonando a comida para dar atenção a sua dona.
— Piter, és a única coisa real em minha vida.
Voltou sua atenção à TV, onde as pessoas na praia faziam sinais que parecia que a chamavam, seus rostos emanavam alegria. Imaginou ser alguma propaganda de resort ou hotéis, mas a verdade é que o universo estava lhe mandando mensagens, e já não eram subliminares. Era o mais claro possível.
Pensou no sonho que tivera e do ótimo sentimento ao imaginar ser uma sereia, do sonho de mergulhar com os peixes e golfinhos, mas precisava aprender a nadar. Nunca havia entrado no mar.
De súbito, o volume da TV aumentou e a frase vindo de dentro do aparelho mexeu com sua imaginação e seus pelos levantaram num frenético arrepio seguido de uma sensação de tranquilidade.
— Leve seu peixe à praia hoje. Será um dia especial.
Não havia mais imagem, a mensagem era apenas sonora e ela não teve certeza de onde vinha. Não fazia sentido, mas o que fazia sentido nesse momento? O que era real? Já havia perdido o dia de trabalho, então por que não aproveitar? Molhar os pés, deixar o sol bater no rosto, ver pessoas. Quase inimaginável para uma mulher que se mantinha presa em seu mundo particular. Um casulo de uma lagarta que talvez nunca se tornasse uma borboleta.
— Levar cães e gatos para passear é normal, mas um peixe?
Mesmo com a cabeça cheia de dúvidas, sentia precisar ir. Colocou Piter em um Aquário menor e saiu em direção à praia. Já na chegada, sentiu uma excitação estranha no seu peixinho, parecia querer pular na água salgada. Era seu único companheiro, mas sentia-se culpada por tê-lo mantido todo esse tempo dentro de poucos litros d’água numa jaula de vidro.
Imediatamente entrou na água caminhando até que as ondas batessem em sua cintura e o soltou. Naquela transparência percebeu que Piter virou-se parecendo agradecer e foi ao fundo. Constatou vendo aquela cena de despedida que alguns são forçados a viver presos, mas de fato, não havia uma regra. Ela mesma trancou o cadeado que a prendia as correntes imaginárias e a mantinham presa, nunca foi obrigada a se fechar para o resto, escolheu e determinou sozinha.
O mar antes agitado parecia parar, e o céu que já era lindo, transformara-se em uma obra de arte com tons de azul raramente visto. Pequenas e calmas ondas batiam em suas pernas dormentes e trêmulas.
Louise olhou para os lados, não havia mais ninguém, voltou os olhos para o mar e de lá saia uma silhueta liquefeita vindo a seu encontro. Parecia deslizar sob a água clara que refletia os raios solares.
Ele colocou-se a sua altura, olhos nos olhos.
— Olá Louise, sabe quem sou?
Tudo o que havia acontecido nesse dia, nada mais a assombrava. Desde que acordou do sonho ou mesmo que ainda estivesse dormindo, (não havia certeza em mais nada) os acontecimentos eram muito surreais. Algo que nunca acreditou que aconteceria... Principalmente com ela.
— Não! Mas diga-me, por favor, estou enlouquecendo?
As formas humanas foram ficando mais visíveis naquele ser feito de água.
— Não estás louca. Sou eu, Piter.
Louise levou as mãos ao rosto depois puxou uma fina e frágil mecha de cabelo de trás da cabeça, não estava assustada, apenas queria ter certeza de estar acordada e torcia para que fosse real.
— Não entendo. Piter, é um peixe!
— Na verdade, fui um peixe enquanto você precisou.
Ela ganhou o peixinho no aniversário de quinze anos, nunca pensou como ele sobrevivera tanto tempo, pensava ser o cuidado que desferia em seu amigo.
— Então sou uma sereia?
— Não! És uma perfeita e linda mulher que aguardei ansioso por poder pegar na mão.
— Se isso é verdade, por que não é um homem livre?
— O senso de liberdade é maior que sair de casa e amar.
— O que faço agora? Ficarei sozinha?
— Sei que tens muitas perguntas, mas a decisão é sua. Vivi junto a ti em todos os seus principais momentos e posso mudar a história. O que passou não recuperamos mais, porém o futuro está em sua frente.
Louise olhou ao horizonte esperando uma ajuda de qualquer lugar, não era boa com mudanças e escolhas, sua rotina era predeterminada, nada nunca mudou o seu curso.
— Passamos muito tempo presos em quatro paredes vendo as mesmas imagens. Ao nosso redor havia janelas, mas estavam sempre fechadas. É hora de resgatar a liberdade que há dentro de seu âmago.
— Como posso abandonar a minha vida?
— Não irás abandonar e sim resgatar algo que escorreu por entre os dedos.
O pôr do sol dava fundo à tela pintada pelo destino. Dois corações em corpos diferentes que sabiam que precisavam um do outro.
Louise não respondeu, pegou a mão de Piter, observando e sentindo a água entrar em seu corpo tornando-a liquefeita e caminharam juntos cortando as ondas misturando-se com o todo. Mudando o rumo, mas sem direção certa.
A decisão é das ondas.
Cristian Canto Feijó, empresário como profissão e escritor nas horas vagas. Nasceu em 26 de fevereiro de 1983 em Hulha Negra RS, hoje reside em Porto Alegre, capital. Descobriu desde muito jovem o que as palavras que formavam histórias poderiam lhe contar. Desde então, tenta deixar um rastro de palavras por onde passa.