AMÉLIA
Do quarto, ela ouviu a maçaneta da porta da sala gritar.
Tropeçando em soluços ardidos ele entrou.
Parou no banheiro.
Um jato desordenado molhou o piso que antes cheirava a pinho.
Ele lembrou de tirar os sapatos e se jogou na cama.
Num bote, seu braço pesado a envolveu.
A sua mão úmida tocou no seco entre suas pernas.
Deserto.
Deitada, ela respirou coragem e cedeu.
Amanhã, é amanhã, repetia enquanto uma faca cega cortava sua carne.
Como todos os dias, acordou às cinco e meia.
Fez o café e arrumou a marmita dele.
Depois que o marido saiu, lavou a louça, limpou o fogão e colocou os potes de comida na geladeira. Daria para hoje e amanhã.
Trocou a roupa de cama e as toalhas.
Varreu toda a casa, limpou o banheiro, recolheu e trocou os sacos do lixo.
Deixou as camisas dele passadas no armário.
Calças dobradas e meias em colmeia na gaveta.
Parou.
Olhou longe para dentro do armário.
Pegou a mala grande de viagem na prateleira mais alta.
Apertou bem as roupas e a bota de couro que não podia deixar de levar.
O zíper fechou seus dentes como num sorriso.
Tomou um banho demorado.
Deixou escorrer o cansaço renovando a pele.
Fresca, olhou-se no espelho nublado.
Hoje, é hoje, repetia para mulher atrás da névoa enquanto a toalha percorria um corpo novo.
Vestiu o vestido verde, costas nuas.
Ajeitou os cachos com os dedos.
Perfumou-se.
Passou o batom vermelho.
Agora, podia.
Sentou-se para escrever o bilhete.
Se cuide.
Dobrou a folha e deixou-a na mesa da sala, embaixo do vaso de violetas.
Fechou a janela e, ao ajeitar a cortina, viu o carro vermelho parado do outro lado da rua.
Antes de sair, afofou as almofadas do sofá. Conferiu se desligou todas as luzes e trancou a porta.
Pronto.
Amélia aperta a chave na mão.
Sente um arrepio.
Atravessa o pequeno jardim em frente à casa.
Passa o trinco no portão.
Na caçamba de lixo da rua, sempre lotada, joga a chave fora.
Atravessa a rua sem olhar para trás.
Do outro lado, Maria já a esperava ao lado do carro.
O abraço.
Estou pronta... vamos!
Deixa que eu boto a sua mala na mala. Entra lá!
Na rádio, Belchior cantava para ela: Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro!
O carro vira a esquina.
Na avenida principal a placa indica a direção: siga em frente.
Elas (con)seguiram.
Cristina Ferreira vive em Petrópolis, RJ, e é professora e leitora apaixonada. É especialista em Literatura para a Infância pelA Casa Tombada, SP, e faz parte da Oficina Literária da escritora Anna Claudia Ramos, que em 2022 lançou o livro Quantas portas cabem numa porta? - pela Editora Casa Lobo, SP, em que teve seu primeiro conto publicado. A escrita tem sido seu fio de tecer encontros, consigo e com o mundo!
@crismarquesferreira