A sujeira na janela
Júlia acordou no susto. Eram dez para as sete em seu celular e a primeira coisa na qual pensou foi: “estou atrasada!”. Sentou-se na cama de casal, organizou as ideias matutinas e olhou para trás: aquela cama parecia estar maior do que o de costume. Pegou o celular mais uma vez e constatou que era sábado e que não haveria a necessidade de levantar cedo e se arrumar para ir trabalhar. Resmungou algo para si mesma e decidiu deitar mais um pouco. Entretanto, quando se virou para tentar dormir mais alguns minutos notou algo em sua janela que a deixou intrigada.
Há alguns meses ela terminara um relacionamento de três anos com Letícia. As duas se conheceram em um desses aplicativos de namoro e nunca tiveram vergonha de dizer isso para as pessoas; afinal, entre jovens e adultos, aquilo ficava mais comum a cada dia. No primeiro encontro, entre conversas que iam desde séries de TV a posições políticas, sentiram a conexão entre si. Depois de alguns meses de mais conversas, beijos e transas, decidiram que já estava na hora de estabelecer um relacionamento sério. O elo que unia suas almas era sadio e terno e, assim, com um pouco mais de um ano de namoro, as duas decidiram morar juntas em um pequeno apartamento em Águas Claras. Apesar de ter apenas um quarto, o flat parecia grande o suficiente para as duas, já que passavam mais tempo fora de casa por conta de seus respectivos trabalhos.
Contudo, nos últimos meses, o que se via era estresse e desapontamento. Às vezes uma calcinha que Letícia deixava pendurada no registro do chuveiro virava motivo para uma discussão acalorada; em outros momentos, Júlia dizia que a louça deveria ter sido lavada antes e não foi. Às vezes uma gostaria de ir para barzinhos com amigos e a outra queria ficar em casa vendo filme. Não que uma não pudesse sair sem a outra, não era isso. Era só que parecia que aquela sintonia de antes havia desaparecido, como um sinal de rádio que não consegue encontrar uma estação musical. Pouco a pouco, as duas viram seus corações serem corroídos por detalhes, que logo viraram avalanches e, por fim, soterraram a relação.
“Mas que diabos é essa mancha aqui?”, comentou consigo mesma. Júlia frequentemente pensava que sofria daqueles transtornos obsessivo-compulsivos, pois detestava ver superfícies de vidro manchadas. Talvez não fosse um transtorno, mas que isso a deixava irritada, com certeza deixava. Levantou-se de vez da cama e foi procurar algum pano e produto de limpeza para tirar a mancha da janela.
Letícia perguntara a Júlia se, mesmo após o fim da relação, elas poderiam manter contato. A reação inicial de Júlia foi de incredulidade. Qual é o sentido de manter contato com ex? A resposta era que Letícia gostava da companhia e amizade dela. Isso parecia novo e confuso demais para Letícia, mesmo adulta e já tendo passado por outros relacionamentos anteriores. Hoje em dia, as pessoas têm seus ex como verdadeiros embustes e não querem saber de amizades pós relacionamento. Enfim, mesmo com o pé atrás, Júlia acabou concordando com a proposta, por mais esdrúxula que parecesse.
Depois de ter limpado o vidro com o produto apropriado, preparou o café matinal, tomou, estudou por algumas horas e depois preparou almoço para uma pessoa só. Como estava entretida com a preparação da comida, nem havia notado a mensagem de Letícia em seu celular: “tá rolando piquenique lá no Parque da Cidade. Bora?”
Como ela consegue agir como se nada tivesse acontecido?
Hesitou.
Não havia plano algum para aquele sábado ensolarado. Ensaiou diversas respostas – longas, curtas, evasivas e diretas –, até que optou por apenas dizer “Bora”. E assim foi feito: Letícia a buscou em casa e as duas passaram toda a tarde juntas no evento, até o cair da noite. Ao chegarem à frente do prédio de Júlia, Letícia inclinou-se para dar-lhe um beijo. Na boca? E numa fração de segundo, Júlia esquivou o rosto para o lado. No fundo, ela sentia que não seria adequado fazer aquilo. Ou seria?
Isso é um princípio de flashback?
A garota desceu do carro com um sentimento incômodo, passou pelo hall de entrada do prédio absorta em pensamentos e tomou o elevador até o quinto andar com a cabeça nas nuvens. Naquele momento, a única coisa em que pensava era em tomar um banho quente e demorado e, depois, deitar em sua cama, junto com seus demônios.
Domingo de manhã. Preguiça dominical. Como era de costume, Júlia não se preocupava em despertar tão cedo naquele dia da semana. Com os olhos remelentos, notou que passava um pouco mais das dez horas no rádio-relógio vintage que ficava sobre a mesa de cabeceira. O mesmo móvel ficava rente à janela do quarto, e foi logo após ver o horário em que havia acordado que notou que sua janela estava mais suja que no dia anterior.
— Porra! – não imaginava que aquela seria a primeira palavra do dia – Eu limpei essa janela ontem! Alguém só pode estar de gozação comigo.
Resmungando palavrões ao léu, fez o mesmo trabalho do dia anterior: procurou um pano e um produto e limpou a mesma janela, mas dessa vez com mais esforço. Ao final, notou que ainda havia algumas manchas, mas por ora, deixou para lá.
A programação para aquele domingo, até então, não era cheia de coisas importantes: algumas matérias de concurso para estudar, limpar a casa, organizar o quarto e, por fim, ver alguma série viciante na Netflix. Porém, em seu celular uma mensagem dizia: “Tem um lançamento no cinema muito bom que eu gostaria de assistir. Tá a fim de ir comigo?” Era Letícia, de novo. A jovem sentiu borboletas em seu estômago; pensou se responderia, hesitou, digitou, apagou... Mas no final escreveu: “Não prefere ver algum outro filme aqui em casa?”.
Droga, o que é que eu tô fazendo comigo?
Júlia sabia que não tinha para onde fugir. Um turbilhão de sentimentos começava a vir à tona e, com isso, começava a se lembrar de como era bom ficar com Letícia, de como sua companhia era agradável, de como era sempre bem-humorada, tinha o sorriso mais lindo que já vira e sua risada era contagiosa. E eis o veredicto: ainda estava apaixonada por Letícia. Verdade seja dita, ela nunca deixou de estar. E agora, veriam um filme juntas, sentiriam seus pés abraçados mais uma vez. Mas... e o que eu faço com essa janela? Ainda está um pouco suja e não consigo limpar.
Será que ela vai notar?
Do filme, as duas não se lembravam de coisa alguma; mas dos beijos e amassos, dos sussurros e gemidos de prazer, elas se lembrariam muito bem. Como você é linda, pensou a garota apaixonada. Letícia notara a expressão meiga nos olhos de Júlia e a tirou de seu devaneio.
— Está pensando em quê? – indagou Letícia.
— Eu? – a voz saiu engasgada – Nada demais. Só estava viajando nos pensamentos... — Lembrou de nós duas, né? – sorriu delicadamente.
— Não! – devolveu no impulso – Sim! Digo, talvez...
— Não precisa dizer nada, gata. Tá tudo bem – e fez cafuné na cabeça de Júlia.
Ela me chamou de gata? Assim eu não consigo aguentar.
Letícia levantou-se para ir tomar banho enquanto Júlia ficava na cama, imersa em lembranças de quando as duas estavam juntas, de lugares que frequentavam, de eventos que costumavam ir. Contudo, algo interrompeu seus pensamentos, como uma freada brusca de um carro. “Só podem estar de brincadeira comigo!”, esbravejou. Enquanto ia a passos pesados em direção à janela do pequeno apartamento, perguntava-se como aquilo poderia estar tão imundo. Ela não estava ficando louca, pois havia limpado mais cedo. Num ímpeto, fechou a cortina de uma vez para que sua amada não visse. Após o banho, Letícia nada comentou sobre a cortina fechada, tampouco sobre a sujeira que aparentemente já estava lá desde quando chegou.
O relógio vintage sobre a mesa de cabeceira dizia que já era hora de partir. Com braços tenros, Letícia envolveu Júlia e ali ficaram por alguns segundos, os corações conversando, ou mesmo, despedindo-se. Um engasgo melancólico tomou conta de uma das garotas e o choro não veio, por pouco.
O que eu fiz comigo mesma?
Nos dias que se seguiram, a chama que estava prestes a reacender foi apagada pelo frio da nova estação. Júlia sempre procurava algo para conversar, fazia convites para outros eventos e até mesmo para mais filmes em sua casa, mas as respostas de Letícia eram evasivas e assim continuaram até se tornarem monossilábicas. A neblina foi tomando conta da cidade e a janela ficava cada vez mais suja a cada dia: havia crostas de sujeira e até mesmo fungos e não havia produto que conseguisse tirar. No calor do momento, Júlia pegou o rádio-relógio e com toda força desferiu um golpe contra a janela, gritando palavras inexprimíveis, na esperança de que aquilo fosse resolver alguma coisa. Mas nada aconteceu, a janela continuava inteira e suja. O rádio relógio, em pedaços.
Três palavras não saíam de sua cabeça.
Eu conheci alguém.
Foi a última mensagem que Letícia enviou antes de Júlia bloqueá-la de seu celular e das redes sociais. Depois disso, caiu na cama e se perdeu em sonhos obscuros a abafados.
Na manhã seguinte, acordou sem forças, sentindo como se estivesse de ressaca. Talvez realmente estivesse, mas não por causa de álcool, mas por tudo que estava passando nas últimas semanas. Quem diria? Não para sua surpresa, lá estava a sujeira, amorfa e irônica, como se desejasse bom dia com um sorriso oblíquo. A garota parecia começar a se acostumar com aquela imundície, sentia que já era parte da casa, como uma pintura abstrata em uma moldura de mau gosto em sua parede, já não se esforçava tanto para querer limpar aquilo, pois seria desperdício de tempo e seria mais um motivo para se estressar.
Assim, ao passo que os dias esfriavam e a neblina rodeava os limites do Distrito Federal, uma depressão invadia a mente de Júlia. Por que ela fez isso comigo? Toda semana ela conseguia um atestado médico para não ter que ir trabalhar, sua fome diminuía, estava emagrecendo, mal se encontrava com amigos e raramente saía do apartamento. Em raros momentos, esfregava a bucha no vidro, na tentativa de enxergar o que havia do lado de fora, sem força e sem sucesso. Será que vou conseguir limpar essa janela algum dia?
Mais meses se passaram sem Letícia e, com grande esforço, alguns amigos conseguiram tirar Júlia de dentro da toca. Aos poucos, a garota começava a se divertir novamente, ria de piadas bobas, tornava-se mais produtiva no trabalho, comia melhor e começava a ganhar alguns quilinhos. Além disso, decidiu renovar seu guarda-roupa, começou a frequentar lugares novos, deixou-se conhecer pessoas interessantes e universos diferentes. E por mais nostálgico que parecesse, também comprou um rádio-relógio novo.
Em uma noite, ao voltar de um desses bares LGBTQIA+ da Asa Norte com seus amigos, notou que sua janela estava limpa. Parecia que havia sido trocada por uma nova! Não havia mancha, nem fungos, nem riscos; o vidro estava imaculado. E foi naquele momento aliviante que tudo se esclareceu: o problema não era eram suas inúmeras tentativas frustradas de limpar a janela ou escondê-la das vistas, pois, na verdade, nunca esteve suja. Era ela. Sua mente projetou naquele vidro o reflexo do que ela nutrira por Letícia e, só ali, depois de curar-se sem perceber, depois de dar uma chance às novas oportunidades, foi que percebeu que o que estivera sujo o tempo inteiro fora seu coração.
Eu conheci alguém.
Duka Menezes é um cantor, compositor e poeta LGBT+ brasiliense. Como poeta, lançou em 2017 seu primeiro livro de poemas, chamado Do fundo do peito. Já como compositor, escreveu algumas canções para musicais, como "Peter Pan para os já crescidos" (2013) e "Resquícios" (2015). No mundo musical, lançou seu primeiro EP "Caos" em 2018. Depois disso, lançou outros singles em todas as plataformas de streaming.
@dukamenezes