Pavorosa e doce mentira
Para Júlia
“Custa-me crer que eu morra. Pois estou borbulhante numa frescura rígida. Minha vida vai ser longuíssima porque cada instante é.” (Clarice Lispector)
“Mamãe, eu tenho medo de quando eu morrer”. Foi o que ela me disse afundando o rosto no travesseiro, quase contendo as lágrimas.
— E o quanto você pensa nisso? — indaguei tentando medir o tamanho da angústia daquela garotinha, da minha garotinha, que era uma miniatura do meu caos existencial.
Quando ela me disse que pensava muito, muito mesmo, neste momento revelando todo seu pavor por meio de sua fisionomia perturbada e pelo jeito que sua voz rouquinha soava, eu quis devolver aquela aflição de volta ao lugar a que ela pertencia: a mim mesma.
Ela disse que tinha muito medo, e eu sabia que aquele era o meu medo, que ela herdara. Mas ela era tão pequena, meu Deus! Eu não conseguia me lembrar de, aos seis anos, essa inquietação já rasgar minha alma.
Ela me perguntou o que acontecia quando morríamos.
— Mãe, eu aposto que a gente não consegue se mexer! Não consegue fazer mais nada.
— É, nosso corpo não se movimenta mais, mas eu acredito que a nossa alma, o que fica dentro do nosso corpo, vai para algum lugar.
Eu precisava acreditar.
— Mas o céu é chato, mamãe. Eu já vi.
— Acho que não vamos para o pedaço do céu que conseguimos ver daqui. E se for um lugar especial? Será que as nuvens são como algodão-doce?
— Eu acho que não, mãe. Acho que a gente fica em todos os lugares, indo de um lugar para o outro. Acho que a gente fica andando por todos os lugares aqui da Terra, mas sem roupa, como se fosse fantasma.
— E você ia achar legal se fosse assim?
— Eu não sei.
Interrompendo o choro, ela me disse que sempre tentava ver Deus. Que às vezes olhava para as nuvens tentando vê-Lo, com toda a atenção do mundo. Que às vezes se deitava no chão, fechava os olhos bem forte e ficava bem quietinha, fingindo que estava morta, para ver se Ele aparecia. Que coragem! Eu não poderia tentar semelhante atitude. E se se tornasse realidade?
A conversa parecia ter tomado um rumo um pouco mais ameno, no limite do tolerável para mim.
Foi quando ela insistiu na ideia da imobilidade:
— Mas e se a gente ficar só parado com os olhos fechados?
Como responder a isso? E se for isso mesmo? Que desesperador! Como aplacar em minha criança algo que me definha a cada suspiro, que tento enganar com todas as forças justamente para poder ter mais tempo com seu sorriso?
Seu rostinho agoniado me implorava por um consolo e a minha impotência se acentuava. O que eu faria? Ela esperava um conforto que eu não podia dar. Inventaria algo baseado nas narrativas bíblicas? Falaria de um céu, um lugar sereno, monótono em que não haveria certeza de que nos encontraríamos? Um lugar desconhecido em que não há a menor garantia de que estaríamos juntas, de que teríamos forma ou consciência de nossa ligação familiar e única após o nosso fim?
Sua aflição foi se intensificando e a minha também. Eu, no entanto, precisava disfarçá-la. É isso que as mães fazem, não? Devem mostrar-se seguras e confiantes.
Eu ainda pensava no que iria responder a ela quando ela lançou a mais dilacerante das indagações.
— Mamãe, e se, quando você morrer, você não conseguir ouvir eu falando com você?
— Acho que eu consigo ouvir lá das nuvens.
Sem saber o porquê, menti e insisti na ideia das nuvens, e seus olhinhos puros e apavorados me clamavam uma solução desesperadamente. Eu não podia decepcionar aquele rostinho celestial desamparado e impaciente. Quem sabe ela se salvaria do abismo de que não pude escapar.
— Eu não quero que você não me ouça, mamãe. E você vai morrer antes de mim. Eu sei. E se você não conseguir ouvir eu falando com você, mãe?
Ela me perguntou com os olhinhos molhados e com a emoção aflorada. Ela compartilhava minha sensibilidade, era intensa no sentir. Além disso, pensava muito. Já havia me dito, com pesar, que se cansava de pensar e de se preocupar. Eu via esses traços com certa aflição, mas não posso negar um certo orgulho por ver o quão parecidas somos.
Sua indagação me fez enfrentar meu maior medo. Eu não queria que o mundo continuasse a existir depois de minha morte. Seria insultuoso e triste. Tudo iria seguir seu rumo como se eu não importasse? Minha trêmula existência seria finalizada e o mundo não pararia? Um disparate. Eu não queria morrer. Não sabia lidar com o desconhecido, com a ausência. O meu pavor era muito maior que o da minha garotinha e eu não podia dizer isso a ela. Não queria mentir, mas não podia desampará-la. Mães devem equivaler a conforto, devem ser portos seguros, e não fonte de angústia.
Mas quem se mostrava forte e corajosa era ela:
— Se isso acontecer, eu tenho um plano: vou colocar um pula-pula para ir pular bem alto e ir até às nuvens ficar com você. Eu até me mataria para ficar com você de novo.
Neste momento, a conversa atingira o intolerável para mim. Estava paralisada, perplexa. O que faria? O que diria? Como consolar-me a mim mesma?
E se eu lhe dissesse que, para poder ouvir seu “mamãe” para sempre, só para que nós duas nunca morrêssemos, eu poderia desejar que o Universo todo sucumbisse? E se eu lhe dissesse que eu deveria ser sua segurança, mas que eu não posso suportar a ideia da finitude? Que eu sinto muito por decepcioná-la, mas que não posso lhe dizer nada, porque tenho mais temor que ela, ainda que ela seja a indefesa de verdade, e eu apenas uma desamparada inventada. E se eu dissesse que eu queria que as palavras curassem como eu sempre acreditei, mas que minhas forças vêm minando sem que eu tenha voz?
Mas, não, ela não era como eu. Ela era mais forte, mais valente. Eu precisava ser firme, ser corajosa por ela. Não sabia fazê-lo, no entanto.
Acovardada, eu, então, sorri com o mais puro amor, desfazendo-me na mais terna mentira: “Não tenha medo. Eu sempre estarei com você”.
Sobre as obras
O conto faz parte do livro Eu, o abismo de mim e outros terrores.
Jenifer Ianof de la Fuente tem 36 anos, nasceu em São Paulo, onde reside atualmente. Casada e mãe de dois filhos, é formada em Letras pela Universidade de São Paulo, pós-graduada em Educação e Tecnologias, Ensino de língua portuguesa e língua espanhola e mestranda em Literatura Brasileira. Atualmente, atua como professora de português e espanhol, revisora de textos e tradutora, além de se dedicar aos estudos de psicanálise, literatura e educação. Acredita no poder transformador da educação afetiva e significativa e da literatura, pela qual sempre foi apaixonada.
@jeniferianof