as mechas
As mechas roxas de Camila se estendem no fosso ao seu lado, chegando a mais de um metro de comprimento. Já fazem sete dias, então hoje é a noite que ele irá cortá-las novamente. A nova rotina de Camila já dura quase três meses, mas o chão continua tão desconfortável como no primeiro dia. Seu sequestrador aparece pontualmente em sua cela.
— Bom dia! Bom dia! Adivinhe o almoço do dia!
— …
— Errou! É pão e maçã!
O homem alto e magro leva o prato em seu colo. Gostaria de levantar para comer, mas está acorrentada pelo pescoço, com a corrente saindo da parede, então se inclina o máximo que consegue sem cair no fosso. Seus braços estão amarrados por uma corda, mas ainda consegue usar suas mãos para pegar a maçã.
— Cuidado! Está envenenada!
Ela congela no meio da mordida.
— Brincadeira! Não sou um monstro não, pirralha. E não sou burro de jogar fora meu ganha pão assim. — Ele diz, pegando o pão e dando uma mordida.
Ele se levanta para sair, mas ela o interrompe.
— Por quê?
— Olha, ela ainda fala! Por quê o quê?
— Por que eu? O que eu fiz. — Ela engasga — O que eu fiz pra merecer isso?
— Nasceu. — Ele solta uma gargalhada. — Olha, se eu tivesse um cabelo como o teu, tudo seria muito mais fácil.
Ela o olha perplexo, e ele logo entende.
— Você não sabe quanto seu cabelo vale? Curioso. Provavelmente teus pais queriam te proteger. Idiotas. — Ele dá mais uma mordida no pão. — Muitos dariam a vida… inclusive, muitos já deram a vida, por uma mecha do seu tipo de cabelo. A nobreza, o exército… meus clientes são dos mais variados.
Com uma última mordida, o pão acaba, e ele vira as costas e abre a porta.
— Bom, você já sabe o resto. Hoje é a noite da coleta. Se comporte e quem sabe te trago duas maçãs.
Camila ouve o som da porta se fechando, e desaba no choro. Quando parece que o desespero vai tomar conta, ela ouve um barulho metálico. Suas lágrimas caem, mas param antes do chão.
E assim, ela tem uma ideia.
* * *
Eduardo corre pela floresta, e sua amiga encapuzada o segue logo atrás. Tinham acabado de soltar todas as galinhas da senhora Teresa, e querem estar longe quando ela perceber.
— Liberdade! Liberdade para todas as galinhas! — Ele grita.
— Abaixo a tirania, viva as galinhas!
— O que é tirania?
— Tirania é quando um gove — Ela é interrompida por um grande tronco no chão, e cai de cara no chão.
— Camila!!
Ela se levanta, tonta da queda, e percebe que seu capuz caiu, revelando seu cabelo. Ela o cobre rapidamente, e olha receosa para Eduardo.
— O seu cabelo… ele é roxo!
— Sim, ele é horrível, por isso eu sempre cubro ele. Pode fingir que não viu?
— Horrível? Eu nunca vi um cabelo dessa cor… Mas achei muito legal!
— Você… Achou?
— Achei!
Os dois desviam o olhar, encabulados. Ela abaixa o capuz, e os dois voltam a fugir para perto de onde moram. Passam a tarde toda juntos, jogam bola e falam sobre seus sonhos.
— Eu quero ser confeiteiro. — Diz Eduardo, enquanto come um pedaço do bolo que fez e leva em sua sacola. — Tenho muita saudade da comida da minha mãe.
— Ela era a melhor cozinheira da cidade. — Ela diz, roubando um pedaço.
— Mas vou ser melhor! Vou ser o melhor confeiteiro do mundo!
E Eduardo começa a tossir, engasgado com o bolo embatumado que fez. Camila ri, e pensa no que responder.
— Não sei o que quero ser ainda. Só sei que não quero ser costureira como meus pais. Não tenho paciência nenhuma pra isso.
— É, você não leva jeito pra isso não. Lembra daquelas luvas que você fez ano passado? Só tinham quatro dedos!
Ela dá um soco em seu braço, quase o derrubando.
— Pra violência você leva mais jeito, viu!
O sol vai desaparecendo, e ao fim do dia, os dois se abraçam e voltam para suas casas. Camila volta a cobrir seu cabelo com o capuz, e quando entra em casa, se esconde de seus pais, que já estavam preocupados com seu sumiço.
Eduardo entra e encontra seu pai. Conta ansiosamente para ele sobre a sua tarde, e como descobriu que o cabelo de sua amiga é roxo. O pai dele fica muito feliz com essa informação.
* * *
O sequestrador abre a porta da cela de Camila. Com a tesoura em mãos, está pronto para cortar seu cabelo. À noite, a iluminação fica escassa, e apenas a tocha do corredor ilumina a prisão da menina de cabelo roxo.
Porém, logo ele percebe que algo está errado. A menina está virada para o lado, numa posição que parece extremamente desconfortável, com a corrente em seu pescoço esticada, e suas mãos escondidas embaixo de sua cabeça.
— Menina, se você tentou… ou tentar qualquer coisa, vou cortar teu almoço pela metade!
Ele se aproxima do corpo imóvel. O silêncio é total.
Mas esse silêncio é cortado pelo prato que Camila arremessa contra seu sequestrador. Pego de surpresa, deixa a tesoura cair, e ela a pega no ar. Seus olhos brilham, roxos, como o seu cabelo. Sem hesitação, e com toda sua força, enfia as lâminas da tesoura no pescoço do homem. Ele se debate, e tenta gritar, mas o som que emite é falho. Camila vê sangue correr por suas mãos, enquanto o sequestrador usa seus últimos suspiros para tentar enforcá-la. Sua visão chega a ficar turva, mas a pressão dos dedos para, e o corpo cai, sem vida, sobre ela.
Um minuto se passa. Camila recobra suas forças. Remove a tesoura do pescoço, derramando mais sangue sobre si, e, com alguma dificuldade, consegue usar as lâminas para cortar a corda que prende suas mãos.
Procura no corpo do sequestrador, e suspira aliviada: ele carrega num molho a chave da corrente que a está prendendo. Ao se libertar, consegue ficar de pé pela primeira vez em três meses. Chora um choro de exaustão.
Ela finalmente pode olhar pela janela que ficou acima de sua cabeça todo esse tempo. Está no alto de uma torre, e consegue avistar um vilarejo à distância.
Ao sair pela porta, encontra um longo corredor, descendo a torre em forma de espiral, interrompido por outras celas iguais à dela. Caminha até a cela mais próxima, e usa uma das chaves para abrir a porta. Lá dentro, é recebida por um olhar surpreso, e um longo cabelo roxo.
Naquele dia sairá de lá, e não estará sozinha.
Lucas Gelati é natural de Caxias do Sul, RS. Tem 28 anos, é professor de Filosofia e gateiro. Contribuiu para coletâneas como “Cidade do Medo” (Gog Ideias, 2021), “Escola do Horror” (Escuro Medo, 2022) e “Escritos da Escuridão” (Obook, 2023).
@lucas.gelati