desfechos
sempre foi assombrado pelo fim.
de tudo.
da comida no prato, do mês com a conta de luz paga, do filme aleatório na televisão, do contrato de gaveta do aluguel onde morava, da música furtiva que escapava pelo rádio, das relações que tentava cultivar.
mesmo no ápice, o fim tava sempre ali rondando, espectral.
mas agora era diferente. era um fim que podia ser fabricado, controlado por ele. não só podia como deveria ser dele, era sua responsabilidade.
eu, enquanto narrador, também tinha interesse nesse fim.
sentiu-se impotente, incapaz. viu a palavra rarear, a escrita escassear.
então notou que fins podem ser triviais, sem grande lições, podem ser miúdos igual pedrinha.
— quem sabe aqui caiba um fim, sem maiores explicações.
o barulho
[barulho do vento batendo nas folhas, miado de um gato, calmaria]
acordou pela falta de barulho.
não estava acostumado com o vazio do barulho.
gostava da sua vida cheia: de palavras, de pessoas e, principalmente, de barulho.
o cheiro lhe trazia lembranças e sensações, mas acreditava que estava vivo até então pela habilidade de escutar barulhos.
pensava muito sobre isso.
— barulho, que palavra engraçada.
[barulho de café sendo servido na cozinha]
mais uma vez estava de favor na casa de gente mais abastada.
a vila onde morava andava com uma movimentação estranha; e quando isso acontecia, quase que instintivamente sabia que era hora de dar um tempo fora.
era hora de levantar e encarar uma socialização forçada com seus anfitriões. eram pessoas gentis, solícitas, que o tratavam muito bem, quase como se houvesse neles uma culpa pela situação pela qual ele passava.
nessas situações tinha que ser quase invisível; pisar na ponta do pé, acenar muito a cabeça positivamente e mais escutar do que falar.
[barulho de conversa na mesa do café]
o barulho do que ele nomeou de ‘não-conversas sobre não-assuntos’ era o que mais lhe deixava confuso.
auras, potências, forças da natureza… nada disso estava no seu vocabulário e ele não tinha a menor vontade de tentar entender.
— como será que tá o Nescau? negão tá sem celular de novo.
o fato de ter para onde correr – movimento que ele evitava ao máximo – quando a coisa apertava, deixando seu melhor amigo pra trás, era algo que corroía ele por dentro.
— dei sorte conhecendo esses playboy (da onde conheço eles mesmo?), mas o negão tendo que ficar lá e aguentar… foda!
—
quando a vila acalmou, pôde voltar.
[barulho de dois tiros, cachorros latindo, crianças brincando]
virou pro lado e dormiu profundamente, como não dormia há três meses, sabendo que acordaria com o barulho do Nescau gritando seu nome no portão bem cedo da manhã.
Me chamo Thiago, tenho 39 anos, sou nascido e criado em Porto Alegre, cidade com a qual tenho uma relação umbilical. Gosto de cinema, psicanálise, marxismo, escrever por prazer e futebol.
@thiagonomachado