Game over x End Game: Parágrafos sobre Vida e Jogo
26 março de 2009
Se minha vida fosse múltiplas vivências, eu viveria como jogo: sem a menor pretensão de destreza e sem qualquer embaraço. Morreria muitas e muitas vezes, apertaria o reset, e voilà: mais uma vez aqui, no meio do fogo cruzado, explorando tenazmente o imperativo cenário, só para descobrir quais weapons e quais tools posso encontrar pelo caminho.
Se acontecesse de zerar o game – agora, faço da vida muitas vidas, um jogo – seria graças a um secret code descoberto (sou uma jogadora medíocre, devo confessar). Com sorte, no “Várias Vidas” hipotético, para acionar full life seja necessário, apenas, digitar “Elvis”. Pronto, você transcendeu. E apenas isso. Elvis é a garantia de uma jornada infinita por aí, explorando o gráfico despreocupadamente. Todavia, não é o end game, não é vencer. Portanto, não basta para aquietar o espírito ávido e entusiasta do jogador.
O suficiente para o apaziguamento de tão excitável existência deveria ser alcançado com o walkthrough, uma espécie de tutorial relatando o passo a passo de seu caminho de vencedor. Porém, "Várias Vidas", o complexo jogo do devir, não é assim, simplista e redutor, como os jogos comuns. Seu gráfico possui a incrível capacidade de transformar-se plenamente a cada momento, exigindo daquele que joga desprendimento e maleabilidade semelhante. Sem o empenho apaixonado do jogador e sua habilidade de fazer-se sempre outro, ainda que o mesmo, não há trapaça que garanta efetivos resultados.
Para ser um jogador é preciso permitir-se ser habitado pelo jogo, muito mais que ocupar, com seu avatar e seu histórico de ações – o inventário –, os espaços virtuais de “Várias Vidas”. Invadindo seu corpo e o ocupando, desde a superfície imediata às entranhas, o game usurpar-lhe-á seu próprio domínio, a ponto de tornar-se uma estranha e necessária obsessão. Experimente: vá para cama, deite-se, feche os olhos. Diga-me o que vê e o que sente: uma confusa síntese de imagens em CG, a certeza dolorosa da própria escravidão.
Escreveu o poeta Antonio Machado: "não há caminho, o caminho se faz ao caminhar". Se não há jogo sem quem o jogue, ou seja, por si só, se ele é construído no instante, na vivência dele mesmo por outrem, por que razão haveria, então, o jogador sem “Várias Vidas”? Quem seria ele antes? E quem seria ele depois, já ultrapassado o último desafio? Esse “Quem” existiria, mesmo na vitória?
Eis a fatídica realidade: o jogador não pode vencer, pois que vencer seria abdicar de sua própria existência enquanto tal. Game over e end game: dois fins diversos. O primeiro indica um "Da capo", um recomeço; o segundo, encerra em definitivo. Vencer destrói um mundo, ao passo que perder constrói outros tantos, de infinitas possibilidades. A vitória só liberta pelo aniquilamento.
Tamara Chagas é historiadora da arte, poeta e artista. Formou-se em Artes Plásticas (UFES), Mestrado em Artes (UFES) e Gestão de Recursos Humanos (UVV). Atualmente, cursa Doutorado em História (UFES), com bolsa CAPES. Publicou livros de não ficção na área de Artes. É autora do livro de poesia Ariadne na Ilha de Naxos, a ser publicado pela Versiprosa, em 2023.