o gótico brasileiro contemporâneo?
Não me cabe negar a influência da modernidade norte americana e europeia na consolidação do gótico, assim como em outras consolidações da nossa e de outras culturas. E se falo em modernidade e gótico, falo também em Edgar Allan Poe. É certo que existe uma e outras obras que datam antes da era moderna (e antes de Poe) e que já entendemos como literatura gótica. Mas a exceção não faz a regra e essa regra se consolidou no momento mais importante da arte literária: durante a pulverização dos gêneros (ou tipos literários); esses que também chamamos de Literatura Moderna. No entanto, sigo não disposta a uma reflexão que se restrinja apenas à influência dos grandes autores europeus e norte-americanos sobre os artistas brasileiros, e volto a procurar entender o que é o medo estético que nos rodeia, nos fascina, nos repele e, as vezes, inspira.
Quando comecei a refletir sistematicamente sobre a literatura gótica brasileira, acreditei que eu falaria dos elementos inerentemente brasileiros, aqueles elementos em que qualquer um coloca os olhos e tem certeza ser uma valorização da nossa cultura miscigenada, enflorestada, com raízes nos contos tradicionais do Saci e do Curupira. Aí eu de fato comecei a ler as discussões em torno da definição da literatura do medo no Brasil. Acontece que não encontrei nenhuma definição de gótico propriamente dito brasileiro. Um monte de elementos que brinca com outro monte de obras que a gente já conhece e não imaginava conter elementos góticos. Pelo menos eu não imaginava.
Por muito tempo acreditou-se não existir uma tradição gótica brasileira. Ora, um gênero intrinsicamente moderno, num cânone literário que é fruto da era moderna, seria possível não receber alguma influência? Assim surgiram muitas outras perguntas: o que é o gótico? Qual é o lugar do gótico no Brasil? Quanto desse espaço literário brasileiro é ocupado pelo medo? Por que gostamos (pelo menos alguns vários de nós) de sentir medo? Por que procuramos por histórias que nos causam desconforto e, muitas vezes, paranoias com espelhos ou ruas vazias?
Sem descartar a importância de levar em consideração o iluminismo e o modernismo para o movimento gótico no Brasil, vou me demorar na era contemporânea, sendo assim, prefiro partir do pressuposto da literatura atual como criações intertextuais e intermidiáticas, sem muito espaço para margens que prendem, e onde quase tudo é possível: basta que respeite a verossimilhança que existe dentro da própria obra, mas quanto á esfera de fora, os nossos contemporâneos não estão preocupados em qual caixa entrar.
Quanto às questões técnicas de investigação para definir do gênero gótico, passo a palavra a um grande estudioso da literatura do medo, o professor Júlio França, esse que também não acredita na busca impiedosa de uma narrativa de horror centrada, sem exceção, nos elementos brasileiros:
“Uma das razões para o apagamento do gótico em nossa tradição literária estaria no fato de que a crítica literária brasileira dos séculos XIX e XX sempre privilegiou o caráter documental da literatura em detrimento do imaginativo, favorecendo obras realistas e aquelas explícita e diretamente relacionadas às questões de identidade nacional.” (grifo meu) (“A literatura brasileira e a tradição gótica”, por Júlio França, in CONVERSAS sobre LITERATURA em tempos de CRISE, p. 469, 2018)
Assim chegamos à reflexão acerca do apagamento do gótico no Brasil e as questões regionalistas. Se o gótico movimentou tanto no Ocidente, influenciando estéticas e esteve presente em alguns cânones muito dissipados aqui no Brasil, como estaríamos do lado de fora? Entre os críticos contemporâneos atentos à literatura do medo, uma das movimentações importantes é trazer para o centro uma tradição marginalizada por conta da ausência de recepção. Aí se criam as reanálises de histórias góticas brasileiras: Noite na Taverna (de Álvares de Azevedo), por exemplo, que injustamente fora definida como uma mera importação de ideias europeias e norte americanas pela crítica literária da época. Todo esse trabalho é importante para o destampamento da tradição gótica brasileira, e não para a criação de uma, pois ela já existe. Desde que o gótico existe.
Nesse momento em que eu já havia entendido não ser possível encontrar a definição do gótico brasileiro em caixinhas muito lacradas, decidi não me demorar nas tecnicidades da teoria literária: estes elementos, usados para definir a literatura do medo, não são exclusivos do gótico e, por isso, e vários outros motivos, não encontraremos uma chave para esse ‘mistério’. Ainda mais quando decidirmos levar em consideração o horror e o terror como gêneros diferentes do gótico, porque eles são. Mas encontramos algumas certezas nesse caminho confuso (e difuso) que é a definição das literaturas: em qualquer país, e em qualquer região desse país, o gótico expressa o medo e as ansiedades da experiência humana moderna. Não definiremos o que é o gótico verde e amarelo, mas teremos a oportunidade de refletir sobre o quê os jovens brasileiros, escritores contemporâneos, têm medo.
Primeiro, precisamos estar atentos à estética da história contada para entender se faz parte do gênero: o medo é um elemento glamourizado no contexto? E, também, é necessário levar em consideração outras peças que quando postas juntas formam o quebra-cabeças das margens do gótico: o locus horribilis, a presença fantasmagórica do passado no presente e a personagem monstruosa, todos esses em conjunto para uma narrativa construtiva do medo como efeito estético; assim forma-se uma história gótica (FRANÇA, 2018). Manteremos nossa atenção para esses três elementos definidores do gênero quando postos junto da estética do medo, mas analisarei dois contos brasileiros e contemporâneos com especial atenção ao locus horribilis, ou melhor dizendo, o local horroroso.
Então, finalmente reformulo minha pergunta: qual a influência do lugar horroroso na tradição do gótico brasileiro? E, do que o Brasil urbano e contemporâneo tem medo?
Os espaços rurais e os espaços urbanos ocupam uma posição diferente no que hoje chamamos de literatura gótica brasileira. E podemos chamá-la assim porque as reanálises de obras como “Noite na Taverna” de Álvares de Azevedo, mal recepcionado pela crítica do século XX, no século XXI recebem diferente atenção aos seus elementos narrativos e influências da literatura gótica inglesa e norte americana. Assim como a literatura romântica brasileira, a literatura gótica surge em oposição ao iluminismo simétrico. Portando, se torna inevitável a dispersão um tanto híbrida desses dois gêneros, principalmente no brasil.
No final do século XVIII e início do século passado, os brasileiros, e também outras nacionalidades, expressavam, bem no geral, temores em relação à transição dos meios rurais para os urbanos. A Revolução Industrial abrangeu o medo pungente da proliferação de grandes metrópoles. Então, se em 1900 o medo era a progressão do rural para o urbano, em 2000 o medo é a própria cidade e o que habita nela.
“A cidade estava me doendo. Não sei bem. Em algum lugar… Não parece estranho? Sentir dores que não se pode precisar onde estão? Eu sinto dor na cidade por onde ando. Sinto as ruas sendo laceradas. Machucam-me as estradas. As luzes amarelas que saem dos apartamentos e das janelas das casas me perfuram como mil agulhas sob as unhas. Há dias em que o país inteiro dói. São os dias em que Isabela me falta. Os dias em que vejo seu rosto em cada menina que passa por mim. E vejo o meu em cada mulher ou mãe ou moça ou avó, que nunca serei.” (“O Título é um Grito”, por Nikelen Witter, in O novo Horror, p. 139, 2022)
No percurso contemporâneo da literatura do medo brasileira, vamos perceber discussões e anseios envolvendo principalmente críticas sociais, psicopatologias e vírus mortais altamente contamináveis, o comum entre esses elementos é a construção de um ambiente terrível, opressivo, transformado no locus horribilis; porém, vale destacar que nossas narrativas de horror não escantearam o princípio grotesco e, sobretudo, a violência sem limites dos humanos que o gótico no princípio se propôs a contar. A violência expressa em escolhas léxicas como “laceradas”, “dor”, “machucam-me” e “perfuram” concretizam a brutalidade ocorrida enquanto “em cada menina” e “em cada mulher ou mãe ou avó” especificam o destino das agressões: as mulheres.
“O Título é um Grito” foi extraído de uma antologia de autores sulistas que vão relatar esse medo urbano, muitas vezes, canalizado no personagem humano. No caso do conto analisado, a tensão se cria a partir dos relatos da presença fantasmagórica retomando os assassinatos brutais de um passado não tão distante assim. Trechos mais concretos como:
“Não é um rio muito largo, mas é profundo e rápido. Ainda mais nessa época, em que chove tanto. Hoje, resolvi me sentar aqui. Tem uma pedra e a noite aumenta as sombras, alongando o pouco de mato que ainda resta. Não era muito longe de umas casas de madeira e latas e papelão. E, mesmo daqui, é possível ouvir os carros ao longe, naquele zumbido incansável. Se eu quisesse, até mesmo notaria as luzes que se acendem em torno do lugar em que estava. Porém, hoje, eu não queria.” (“O Título é um Grito”, por Nikelen Witter, in O novo Horror, p. 139, 2022.)
O medo presente na dor descrita pela assombração nos guia numa atmosfera de tensão. Descobrimos, através de um narrador observador, que os homicidas sentem pavor da cadeia, medo de fantasmas, são horrorizados pela ideia de terem suas vidas destruídas no caso vir a público um estupro seguido de estrangulamento, mas em nenhum momento algum desses homens sente dor. O pavor entra em alastramento ao entender que, além de nenhuma mulher estar em segurança, também todos os homens são cúmplices do machismo. O medo (e as agressões) gerados pelo sexo masculino não é algo novo, mas a denúncia sim: temos a crítica social expressa num ambiente extremamente opressivo e violento, assim formando o locus horribilis da contemporaneidade feminina brasileira.
"Diana fez um gesto assustado, para chamar a atenção da mãe.
Movimento.
As duas se puseram em alerta.
Diana apertou o braço da mãe. O facão, firme no punho. Aparece! Aparece, bicho de merda."
(“As Onças”, por Christiano Aguiar, in Gótico Nordestino, 2022.)
Por sua vez, o autor paraibano no conto “As Onças” presente no livro “Gótico Nordestino”, nos trará também medos urbanos e contemporâneos. Porém, o que pretendo atentar como paralelismo nessas duas organizações é que ambas se propõem à centralização do medo como efeito estético, e não ao regionalismo. Apesar de “Gótico Nordestino” recontar histórias que nos habituamos a ver como estrangeiras, mas nos familiarizando ao acrescentar crendices populares e localização inconfundível para quem é brasileiro. Volto a citar Poe e agora evoco também Lovecraft, autores estadunidenses que escreveram para muito além das ruas de Nova Iorque e não foram cobrados por sua “cor local” (colocação que pego emprestada do professor Júlio França), mas consolidaram o gótico norte-americano e certamente influenciaram parte significativa do Ocidente dentro do gênero.
Em “As Onças”, somos levados a uma cidade que sofre um alastramento constante de onças não convencionais em tamanho e procriação, tornando a clausura generalizada e mantida por força maior. Me parece muito familiar, principalmente quando se abre o espaço narrativo com essa junta de palavras: “Na mesa da cozinha, as novas coisas essenciais: o facão manchado, gaze, analgésicos, luvas, metros de corda resistente, linha e agulhas cirúrgicas.” A mim, rememora diretamente à pandemia da Covid-19, em que “essenciais” era uma palavra muito usada por nós, enclausurados em nossas próprias casas e com medo de nossas próprias ruas.
A fim de construir uma atmosfera de tensão, durante “As Onças” somos levados a atravessar junto de mãe e filha as três esquinas que separam a casa dos estabelecimentos essenciais, assim instala-se um estado de alerta. Mas algo se transforma durante essa tensão. Somos levados a acreditar que não há como sobreviver ao encontro com alguma das onças, mas quando esse encontro acontece o desdobramento é outro. “A dor, a ansiedade e o medo escorriam de tal forma através do corpo das três fêmeas que um laço invisível as comprometia num enredo novo, um enredo tecido numa língua desconhecida, porém profunda.” Logo descobrimos que o horror tem origem no humano. A imoralidade tecida como medo estético. Medo que alguém que amamos mate o restante de nós ao contrair uma doença que enclausurou a população. O locus horribilis pós-pandêmico.
Nós, seres humanos, fomos presenteados com a terrível consciência da frágil finitude de nossas vidas, e por mais que minha proposta não tenha sido buscar a definição concreta da literatura do medo no Brasil, pode-se dizer que: sejam as onças gigantes e assassinas, sejam as fantasmas de mulheres em busca de retaliação, temos medo do que desconhecido da probabilidade. Batemos os dentes com medo das mortes brutais que sabemos ser possível dentro e fora das nossas casas. Ou você nunca teve medo de um homem? E de um vírus assassino?
REFERÊNCIAS
WITTER, Nikelen. O título é um grito. In O novo horror. Porto Alegre: O Grito, 2022.
AGUIAR, Cristhiano. As onças. In Gótico Nordestino. São Paulo: Alfaguara, 2022.
CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas cidades, 1993.
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. 5ed., São Paulo: Martins Fontes, 2003.
FRANÇA, Júlio. O sequestro do Gótico no Brasil. As Nuances do Gótico: do Setecentos à atualidade, p. 111-24, 2017.
FRANÇA, Júlio. O gótico e a presença fantasmagórica do passado. Anais eletrônicos do XV encontro da ABRALIC, v. 1, p. 2492-2502, 2016.
FRANÇA, Júlio. Monstros reais, monstros insólitos: aspectos da literatura do medo no Brasil. Vertentes teóricas e ficcionais do insólito. Rio de Janeiro: Caetés, p. 187-195, 2012.
FRANÇA, Júlio. A melancolia dos invernos nos ardores do verão: a literatura brasileira e a tradição gótica.
FRANÇA, Júlio. A alma encantadora das ruas e Dentro da noite: João do Rio e o medo urbano na literatura brasileira. As arquiteturas do medo e o insólito ficcional. Rio de Janeiro: Editora Caetés, p. 66-78, 2013.
GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. Editora Ática, 2004.
MARKENDOLF, Marcio; SERRAVALLE de Sá, Daniel; DROZDOWSKA-BROERING, Izabela. Góticos: perspectivas contemporâneas. 1ª ed. digital. 4º Seminário de Estudos do Gótico: Florianópolis, 2023.
Mariana Elis é leitora por profissão e escritora por prazer. Como revisora de textos literários trabalha para o meio editorial independente. É professora de literatura por vocação e acabou descobrindo o poder (e a paixão) da mediação da leitura de horror. Assim iniciou na pesquisa acadêmica fornecendo novas perspectivas das narrativas do medo para cativar e formar leitores.
@marianaelis.revisa