Carona em Mau Tempo
A caminhonete rangia por todos os lados. Era carro mal cuidado, mas fiel ao motorista. Estavam juntos há anos. Por isso ele não teve receio de enfrentar aquela neblina que baixou repentina ali na cidade.
O cerrado não costumava ter neblinas à noitinha, em pleno agosto.
Pareceu ser um vulto, achou que era um animal daqueles que sempre surgiam na pista do nada. Pegou firme no volante e distanciou o carro. O vulto continuava lá.
Viu uma pessoa. Uma mulher. Acenando. Era mesmo uma moça nova. Pedindo carona em plena estrada vazia.
Não custava nada. Sobrava espaço no carro. Cabine simples, para dois era bem confortável. Parou. Deu até ré, para não deixar a menina andar muito na beira da estrada.
— Pra onde você tá indo?
Ela olhou para ele e nada.
— Ei moça, tá querendo ir pra onde?
— Pra próxima cidade.
Não pareceu muito confiante, mas de novo, não custava nada. Ele passaria em uma cidade logo à frente. O destino era uma estrada de terra após Teresina de Goiás, mas antes disso ainda tinha São João D’Aliança. Ela devia estar indo para lá.
Entrou no carro e ele arrancou. Atento, tentando enxergar se via mais alguém ou alguma coisa.
— E a moça fazia o que aí sozinha neste mau tempo? Veio de onde?
— Era aqui meu ponto de parada. Estava esperando, mas ninguém chegou.
Confusa a moça. Bem arrumada. Só não gosta de conversar. Era nova. Que mal podia acontecer a ela, assim sozinha na estrada? Ainda bem que apareci. Que mal poderia eu fazer a ela? Mal nada, só bem. Que custa? Ela parece não se importar.
— A moça tá com frio? Posso ligar o aquecedor mais forte.
— Tenho casaco. Tá na mochila.
— Que mochila, moça? Não entrou com nada.
Essa pouca roupa não serve de nada pro frio. Não serve de nada pra nada. Tapa o quê? Só o que é proibido. De resto, tudo à mostra. De tão bonito devia ser proibido também. Que mal poderia eu fazer a ela? Quem iria saber? Ela parece não se importar.
—Eu tenho comida aí na sacola atrás do banco. A moça pode se servir. Tem de tudo pra deixar a gente acordado na estrada.
— Eu não posso mesmo dormir. Minha cabeça dói, tá pesada. Mas não quero dormir. Não sinto fome, só enjoo. Minha barriga também dói.
Confusa a moça. Se a barriga dói, só pode ser a fome. Que mal podia ter acontecido a ela na estrada? Eu não fui. Nunca fiz. Sou homem de bem. A oportunidade não vai fazer palco hoje. Nem se for coisa rápida. Nem se for.
— Eu estava com calor antes. Agora já sinto muito frio.
— Falei! Vou aumentar o aquecedor.
Se eu parar o carro rápido aqui na terra, ninguém vê nada com esse tempo. Posso dizer que preciso pegar algo lá atrás e será rápido. Deve ser isso que ela queria. Sozinha lá na estrada.
Diminuiu a velocidade, enquanto procurava o lugar ideal. Deixaria para o destino. Se o tal lugar aparecesse, a oportunidade também.
— Temos que voltar.
Ela disse para dentro, baixinho. Depois repetiu alto e firme. Num suspiro só.
— Era minha amiga, ela ia me buscar lá. Era isso, minha carona. Temos que voltar!
Ela se enganou com minha intenção. Não ia fazer nada. Sou homem de bem. Tenho filho grande.
— Como assim moça, já andamos quilômetros. Volto não. Quem enxerga o quê neste tempo?
— Temos que voltar! Você não entende! Se não me achar, ficará sozinha. Você não entende. Não sei outro jeito. É tudo que eu peço, não quero mais nada. Me ajude, por favor!
A insistência virou loucura dentro do carro. De não falar quase nada, passou para gritaria e súplica. Era sincera. Ele não queria ser culpado de um mal que nem fez a uma moça, quem dirá a duas. Voltou.
Já perto do local, que lembrava ser algo próximo a uma parada de ônibus, avistou carros de polícia.
E essas luzes, por que tantos carros? Como assim? Eu não fiz nada! Pensei coisas, mas só na minha cabeça. Como podem saber? Alguém viu e já entendeu tudo errado. Era só carona, ia deixar a moça na próxima cidade, melhor que do jeito que a encontrei.
Parou no acostamento. Chacoalhava de frio, para disfarçar a tremura do nervoso.
— Vem menina, vem explicar tudo aqui.
Ele desceu primeiro e se aproximou da polícia.
— Eu não fiz nada seu policial. Só dei carona pra moça na estrada. Ela insistiu em voltar, então fiz o que pedia.
— Senhor, do que está falando? Pelo que vimos até agora não houve outro carro envolvido no acidente. A moça infelizmente ainda está presa nas ferragens, mas já sem vida.
Ele assustou. Olhou o corpo preso e coberto de sangue. Gritou de dó.
— É a amiga! Bem que ela disse que iam se encontrar aqui. Coitada da pobre. Falei que não se enxerga nada neste mau tempo.
— Eu não vou contar pra ela. O senhor que é policial que conte. Pra onde ela foi?
Ele buscava ao redor, mas a neblina agressiva entorpecia ainda mais a visão.
— Que outra moça o senhor diz? Só há uma e é a condutora.
— Não, seu policial! A moça que estava comigo. Só de carona. Ela voltou aqui, ela quis voltar. Trouxe de volta.
Andava atordoado de um lado para o outro enquanto repetia a situação aos policiais. Zonzo de repassar a conversa que tivera com a moça, permanecia certo do que dissera, e do que fizera.
Quanto mais pensava, mais se questionava. Será que ela acenou mesmo? Será que dormiu dirigindo? Alguém dormiu nesta história? Só se for a pobre moça esmagada.
Precisava de uma explicação para o acontecido! Cadê a tal menina, que agora resolveu sumir nesse matagal.
Ouviu chamados no rádio do policial a sua frente. Eram instruções para aproximação do socorro.
Ele foi junto.
— Senhor, encontramos mais um corpo. Parece ter sido jogado do carro. Seguimos os vestígios até aqui. O ferimento na cabeça e abdômen a impediram de voltar. Uma mulher também. Moça nova. Morreu aqui mesmo, perto do rio. Já está assim há horas.
O policial, olhando ao motorista que acompanhou a explicação, perguntou:
— Como sabia deste outro corpo?
O sangue lhe fugiu do rosto. Com a cara branca confundindo-se na neblina ele engasgou.
— Eu, eu…eu só. Horas, o senhor disse? Corpo, é? Faz frio aqui mesmo. Minha nossa! Ela... ela me pediu pra voltar.
Sem rastros de outro carro na pista, o homem foi liberado. Corpo livre e mente cativa. Nunca entendeu o que se passou. Só sabe que não pega mais aquela estrada com mal tempo ou à noite. Aliás, nenhum outro homem pegou aquela estrada com más intenções. As mulheres do interior do Goiás contam com a ajuda da moça confusa, sempre presente.
Cecília Vieira é turismóloga por formação e escritora de coração. Seu primeiro livro é resultado do mestrado na Universidade de Salamanca. Estreou na literatura infantil com o Marina, a girafa que queria ser estrela, e com este participou na Bienal SP; Felib/22 e outras feiras. Seu último lançamento é o juvenil Guadalupe sobre um tapete de mangas. É contista em antologias e revistas digitais e impressas como a Traços/DF, LiteraLivre, Contos de Samsara, dentre outras.
@cecivieira_eu