A Essência
O perigo havia passado, por enquanto.
Olhando janela afora, agora só ouvia sua respiração, sentia o suor escorrer roupa adentro e se abafar em uma nuvem de preocupação. O Homem olhava, e era só isso que ele fazia…
E desde quando havia algo mais para ser feito? Sobreviver sozinho no meio de um espaço liminar entre cada monstruosidade nova que o mundo jogava contra ele, poderia ser apenas mais uma semana e ele não veria o mínimo de diferença, só veria o próprio umbigo e o próprio sofrimento. Haviam outros naquele eterno pesadelo como ele? Não havia maneira de saber, não havia celular para ligar ou aplicativo para se comunicar.
O fim havia chegado e com ele veio a perdição de cada ser vivo, a queima de carne e osso, o fim do pensamento solitário e da conversa em voz alta. Ele sentia falta de conversar, mas há tanto não o fazia que havia esquecido como soava a própria voz.
Se afastando da janela, decidiu se limpar um pouco, pegando um pedaço de pano jogado sob uma cadeira e o passando pelo pescoço e pelo rosto. Andando com cuidado de não chamar atenção alguma além do necessário, as coisas lá fora já haviam o prejudicado demais, não quis abusar da sorte. Iria de O Homem, para O Cadáver com facilidade.
Iria?
Parou para pensar, olhou suas mãos sujas e tossiu ao perceber que podia ser o que fosse, ele ainda era humano. E humanos sentiam as coisas da forma que nenhum outro ser sente, nem mesmo essas aberrações.
Eram isso que elas eram talvez? Sentimentos revoltados contra aqueles que os sentiam pouco demais? Eram criaturas criadas a partir da falta de amor ou do excesso dele? O que poderiam ser enquanto sentavam no chão e expunham suas línguas para fora e seus olhos psicodélicos rebolando como se ouvissem uma música animada?
A tosse o mataria ainda, pensou, enquanto segurou a próxima com um movimento da mão contra sua barba e andava de volta, pegando sua arma no caminho.
O que poderia existir além dele, naquele momento?
Se sentou contra a janela, e pensou em adormecer ali, contra a visão da falta de perigo iminente e sentindo a ventania suave em seu rosto há aliviar sua temperatura e esforço físico após tudo, e ao fechar os olhos, sonhou com sua voz.
O perigo nunca passava, pensou ela.
Enquanto caminhava pelas ruas feitas de cipós caídos e mata espalhada, A Mulher andou apenas pela incapacidade de correr, os pés doíam a cada movimento novo, mas ela precisava continuar e sobreviver, afinal, era para isso que ela foi feita, não? Sobrevivência.
E no fim, andaria até morrer. A sola do seu pé era carne feita para ser esfolada enquanto o chão não aprendia a se mover por ela como o céu fazia acima… Era algo a se pensar, imaginava, mas estava sozinha para sempre e não podia fazer muito além de pensar.
Solidão foi uma palavra de entendimento próprio, sem necessidade de dicionário para explicar ou de alguma outra pessoa indo embora para aprender. Não, ela aprendeu tudo isso sozinha e continuaria a exercer a solidão enquanto precisasse escapar das loucuras do mundo que pareciam querer engolir o seu próprio ser.
Agora a deixaram para trás. Deixaram-na para trás até ela achar metade do caminho e parar para respirar. Se abaixou como se esquivasse da onda em uma murada e por debaixo das águas viu comida, um enlatado de peixe qualquer com gosto de merda, mas comida. O que estava morto não podia matar ninguém, não ali pelo menos. E ela não estava morta?
Não havia ninguém para ela matar.
E no entanto, no limiar da fome e da esperança de matá-la, ela ouviu, esse canil de loucura em espiral se aproximando da direita, vozes, ruídos e sons de outra existência, algo que não devia murmurar ou falar, mas explicava a sua essência através de matança sem sentido. Essa coisa se moveu enquanto ela parou, parou de existir e de sentir, parou de respirar. A Essência pisou no chão ao seu lado e espirrou os resquícios de vida que esse mundo possuía antes dela pisar aqui, mas o que atingiu seu corpo foi apenas esquecimento e poeira molecular, mudança, passagem de tempo. Ela sentiu medo, e a Essência… A Essência sentiu nada.
Passou por ela sem deixar rastro de algo além do rasgo eterno de medo que deixaria ali naquele lugar, algo… algo que foi dividido entre ela e a coisa. Algo só deles.
Ela nunca esqueceria daquilo, e a coisa não demoraria a fazê-la lembrar.
Saiu debaixo das ondas com o peixe ainda em sua boca, respirando fundo e olhando em volta, buscando por algo além de um novo caminho, não encontrou.
Então seguiu por onde estava indo antes, os pés cansados ainda resistindo.
Havia sentido nos sonhos? Ou todo sono era apenas olhos fechados e memórias quase esquecidas valendo a pena ser revisitadas?
O Homem acordou com um gosto amargo na boca, não sabia o que era, mas ignorou e continuou seguindo em frente, encarando o perigo lá fora como outro dia qualquer. Não gostou do que achou.
Enquanto sentia-se revigorado, ele ainda respirava, mesmo que ruidosamente, olhou para fora e encontrou apenas luz e mata, o mundo chocando-se com o de outro. Alguém havia chegado perto demais e a confusão havia causado uma abundância de vida em um local onde a morte dominava. Não sabia se gostava disso, talvez finalmente pudesse ouvir a própria voz novamente, mas isso significava que veria outras coisas, outras Aberrações, outras Monstruosidades.
Seus olhos demoraram a se ajustar, mas quando viu a forma segura de uma árvore, andou até ela, tocou no seu tronco sentindo-o como se esperasse não conseguir, e deixou escapar um breve som de seu corpo, algo que quase lembrava o que ele havia esquecido de fazer e amava anteriormente. Calou ao perceber movimento, uma forma singular se mexia com dificuldade e parecia perceber a troca de realidades agora, dois choques, cada caça com sua presa.
Ela era nova, não podia ser muito mais velha do que tudo isso que agora acontece, o que só podia indicar sobrevivência à sua maior força, alguém difícil de lidar, mas com o corpo fragilizado, talvez, pela idade. Segurou a arma em sua mão com força, e ergueu-a para cima da própria cabeça, som exige ar, e ar exige…
Caos. O som a fez imediatamente cair contra o chão. Percebeu o choque de realidades muito rápido, mas não imaginou que já estivesse tão perto.
Parecia ter vindo de algum lugar a frente, provavelmente próximo a uma árvore que não gostava de ser tocada, ela sentia isso, como o medo que tocou seu coração com força quando pensou que talvez a Essência ouvisse aquilo, e quando ela viesse, talvez não tivesse tanta sorte quanto teve no seu último encontro próximo a murada.
O mar ecoava em algum local distante e ela ouviu um som seco de ar saindo de pulmões, ar comprimido. Uma tosse, um respingo de vida clamando a morte.
Ela se moveu para dentro da mata, abaixada como um rato, como se o chão fosse a coisa mais quente e deliciosa do mundo quando na realidade ela sentia dor ao rastejar contra o frio e as pequenas gotículas de água acumuladas em plantas baixas.
Não demorou muito até ela ver O Homem, com uma arma enferrujada levantada contra o caminho, como se esperasse ela ali. Ela não pensou muito, apenas passou por ele, abaixando contra a mesma árvore e agarrando uma faca de entalhe que ela possuía.
A visão dela era boa, e ao longe, ela podia jurar conseguir ver outra coisa se movendo em direção ao berro que o cano daquela arma deu. Não podia fazer muito além de… Ela não… Ela devia perfurar o homem e deixá-lo morrer.
Talvez aí a realidade dos dois mundos se quebrasse e sua Essência se acalmasse o suficiente para deixá-la viver? Talvez.
Ela se moveu rápido, mirando uma facada na barriga do homem, esperando sentir o sangue quente dele contra suas mãos.
Um zunido ecoou pelos seus ouvidos, um cheiro forte acompanhado de uma queimadura irradiada pela sua lateral enquanto o seu ombro explode em dor e sangue quente escorrendo contra seu rosto.
O primeiro sentimento real após a dor é medo, e o movimento é real, A Mulher não consegue mais erguer a faca, mas ela consegue pegá-la do chão e correr gemendo de dor para longe, se perdendo na mata enquanto o homem parece respirar ruidosamente correndo atrás, pequenos estalidos ecoando de sua arma e um som de… tudo, a sua volta.
Ela corre.
Quanto tempo se passa até que a realidade de alguém se misture? Ele não saberia determinar até ver A Mulher explodir em dor na sua frente e enquanto chorava correr para longe. Ele tentou acabar com a dor dela, tentou terminar o seu horrendo dia com um estalo, mas agora, ele mal ouvia. Seus sentidos…
Seus olhos ardiam enquanto a pólvora subia e seus olhos lacrimejavam, sentia seu nariz arder e sua cabeça ia a mil, mas não poderia parar agora. O sangue dela havia manchado seu mundo e não importava quanto tempo passasse, não havia mais uma forma de limpar, não havia pano para passar por cima dessa poça. Ao longe, ele viu uma nova monstruosidade, algo eterno… algo… algo novo.
Sentiu medo irradiar pelo corpo novamente e correu, correu para seu lugar seguro, correu para…
A janela não estava ali mais, a janela não existia mais.
A vadia havia eternizado a sua essência no seu mundo e agora… agora ele não estava mais seguro.
Olhou para as próprias mãos e percebeu… Que o quer que aquilo fosse, aquela coisa, não iria chegar na Mulher primeiro. Ignorou o gosto amargo na sua boca e mancou em sua direção.
A Essência viria. Ela sabia disso.
Caminhava com dificuldade, depois de correr tempo suficiente para seus pés começarem a sangrar.
Sentia dor em todos os pontos de seu corpo e seu sangue manchava o mundo que agora ela não sabia ser dela ou dele, mas após alguns segundos conseguiu ver a murada novamente.
Se abaixou, se protegendo o máximo possível enquanto sentia a água balançar seu corpo. Precisava cuidar dessa coisa em seu ombro, esse ferimento causado pelo tiro. Enquanto pensava nas possibilidades, ela respirou fundo, focando nos sons além. Não haviam passos, não havia vozes e sons em abundância, nada além daquilo.
Seus próprios gemidos de dor eram os únicos naquele local.
Olhou para a sua mão e percebeu que estava com dificuldade em mexer os dedos, chorando de leve, ela pegou um pedaço de pano que estava ali, próximo a uma janela, e o repousou sobre sua ferida, a dor era grande demais, tão enorme que não conseguiria medi-la.
O que havia para fazer além de chorar? Não havia cura para tiros. Só o tempo, e o tempo era precário, era algo em que a Essência se alimentava, não ela. A Mulher não queria sentir dor, e, no entanto, O Homem havia causado isso a ela.
Tentou se recompor, mas só conseguia sentir mais e mais dor. E ódio. Só então reparou na janela novamente, esse outro local, essa outra coisa. Isso era criação dele, não dela.
Não. Ela queria o mar, o navio, a distância. As histórias falavam de mundos na água, onde ela poderia descansar e dormir contra madeira e sentir o cheiro de sal contra a água.
Agora, ela sentia o gosto salgado das lágrimas e esperava apenas pelo próximo movimento da amurada. No entanto, sabia que precisava focar no agora, e nas dores que sentia.
A eternidade poderia esperar enquanto ela se recuperava de um tiro.
Apertou o pano contra a ferida e esperou, esperou a dor passar e a Essência chegar, mas em berros de desespero cortando o tempo e o local, o choque de realidades pareceu ter um filho enquanto a janela sumiu em um som rápido, ela passou por debaixo da amurada novamente, mas não viu nada, apenas sentiu.
Essa ventania suave em seu rosto a aliviar sua temperatura e esforço físico após tudo que havia passado. Toda a correria, toda a dor.
O chão a sua frente vibrava com a quebra de realidade e ela viu um movimento no alto, acima das árvores, essa coisa enorme e sem forma que parecia como se o céu fosse uma grande lona movendo-se contra o vento e causando a queda de estrelas, cada uma com um nome, um sentimento e cada uma delas falava com ela.
Cada voz dizia uma coisa e suas línguas não existiam, no entanto, seu significado era puro demais para não ser entendido, todo o sentimento era verdadeiro, e ela não pode deixar de chorar e berrar enquanto foi sobrepujada pelo poder da eternidade.
Quando milhões de estrelas cadentes caíram, ela teve tempo de murmurar apenas um desejo.
A dor em seu peito era real demais para ser ignorada. Ele sentia uma queimadura ecoando e reverberando pelos seus ossos, uma eternidade que só podia ser manchada pela vida mortal de um Homem, e era isso que ele era. Um.
Ele não podia mais respirar sem ouvir ruídos, sem ouvir a dor em seu peito e sem sentir o gosto amargo e a cor vermelha em sua língua.
A tosse o mataria, afinal.
Rastejava pelo chão atrás da Mulher, pois era ela a causadora de tudo aquilo. O choque de realidades, os dois mundos eternos não podiam coexistir e por isto ele agora ia… ia aonde? As monstruosidades falavam em vozes de outro mundo, então ele iria a outro? Iria se tornar uma delas? O sentimento era real, afinal? Ele estava certo.
Enquanto pensava, viu a janela se formar, ao longe, enquanto milhões de luzes brilhavam pelo céu e sua visão periférica era marcada pela demonstração de poder das aberrações, provavelmente matando a garota.
Chegou tarde, mas pelo menos ele teria seu local seguro, conseguiria se recuperar. O céu parou de se mover, e ele se virou para cima, a tempo de ver duas estrelas vivas ao seu lado, repousadas abaixo de um cabelo de sujo e de um rosto feminino, jovem.
A Mulher.
Sentiu seu coração ser perfurado. O sangue quente escorrendo do seu corpo pelas mãos magras dela.
Me ajude - ele murmurou.
Então era assim. Assim que a voz dele soava… com medo.
Sangue quente escorria pelas suas mãos agora. Era algo diferente. Ela não sabia o que fazer além disso, só sabia o que sentia.
A dor havia passado, o ódio também. A solidão ainda estava ali, mas não havia mais significado.
No entanto, o oceano estava chamando, o som do mar e o cheiro da maresia seriam seus. Ela matou o Homem, pois ele merecia, ele havia causado dor a ela simplesmente por existir, que tipo de criatura fazia isso?
O homem pediu ajuda a ela enquanto estava rastejando no chão.
Quem ele achava que ela era?
A matança não era sem sentido, ela não podia engolir a realidade e a existência, ela só podia sentir a sua essência e… Era podre, pobre. Era egoísta e odiosa, doente com algo além da tosse, algo feio e impuro.
Ela olhou para cima, sentindo a eternidade a tocando. E agradeceu.
*
O sal. A luz refletia e os cabelos esvoaçavam-se contra o vento enquanto a pele parecia arrepiar, mas o sal… Onde o sal começava e a areia acabava? Talvez nunca saberia. Ela só queria sentir, uma vez, o que precisava.
Empurrou a embarcação contra a água, correndo ao seu lado para pular dentro e deixou seu corpo repousar contra a madeira, sentindo-se bem.
Seus olhos se fecharam, as estrelas sumiram. Só havia a murada, os peixes abaixo nadavam na água e as ondas viriam em breve se quebrar contra o barco, balançando-a até dormir.
Ela sentia aquilo em seu cerne e sabia que não precisava acordar nunca mais após dormir ali.
A eternidade havia a tocado e ela sabia que, ela era apenas Uma Mulher… não precisava de muito mais do que saber daquilo para simplesmente deixar acontecer.
Sua essência era a mortalidade, nada podia mudar aquilo. O perigo havia passado e seus pés, finalmente, poderiam descansar.
Repousou a cabeça contra a murada.
Meu nome é Eike Dias Andrade e eu escrevo desde os 12 anos de idade. Meu sonho era ser publicado, e realizei isso recentemente, então pensei... por que não tentar de novo? Eu moro em Patos de Minas – MG e tento escrever sempre que posso e quando eu posso. Isso não vai mudar e eu espero que, por mais que eu nunca mude alguém, que quem quer que leia esse conto se divirta!
@andradeeike