O cuspe
– Alguém me ajuda?
Antes que Antônia fechasse a boca, Bárbara já tinha aberto a porta do reservado e pegado o pacote que ela segurava na mão trêmula. Primeiro, Bárbara ri. Riu enquanto a menina batia em Antônia na escola, riu quando Laura anunciou que havia largado a faculdade, riu quando foi pedida em casamento pelo namorado. Riu meia hora atrás quando Antônia contou, após um dia de silêncio e cara fechada, que a menstruação estava atrasada há quase uma semana. Depois de rir, Bárbara entra em ação. Foi ela quem dirigiu o carro, foi ela quem as levou até a farmácia. Agora é ela quem mergulha a ponta da tira fina de papel no potinho cheio de xixi e lhes passa instruções:
– Laura, liga o cronômetro. Um minuto e meio. Um risco é negativo, dois riscos, positivo. Tu fecha os olhos. E respira.
A última visão de Antônia foi do rosto concentrado de Laura. Testa franzida, lábios apertados, os olhos escuros atentos. Ela havia jogado o longo cabelo por cima do ombro, como sempre faz, para não atrapalhar. Há mais de vinte anos Laura escuta, revirando os olhos e balançando a cabeça, todos os dramas dela. Não interrompe, não faz perguntas, não diz um ai. Só abre a boca quando Antônia finalmente termina. Então começam as análises, os conselhos, o sermão, em geral num tom calmo e ponderado. Se Laura levanta a voz com Antônia, é porque a situação é grave. Hoje ela levantou:
– Vai fazer o teste, sim.
– Não vou.
– Vai.
– Não vou.
– Tu vai fazer a porcaria deste teste, sim! Se tá grávida, tá grávida. O “positivo” não vai mudar isso. Se der negativo, e eu acho que vai dar, ótimo. Tu relaxa e a menstruação vem. Mas, se não fizer, continua nervosa, aí mesmo que não menstrua, e vai enlouquecer a gente. Agora toma esta água.
De olhos fechados e punhos cerrados, Antônia espera. Em sua mente, cantarola “não, não, não”. Não posso. Não assim. Não agora. Há dias repassava cada detalhe daquela noite, fazia e refazia cálculos, lia e relia artigos no Google, pulava todo e qualquer vídeo com bebês que aparecia no feed. Não falou com ninguém, não escreveu. Antônia processa as coisas do lado de fora. Sempre processou. Os pensamentos, sentimentos e impressões acelerados e desordenados que carrega lá dentro se organizam quando os transforma em palavras. É na palavra que ganham vida. Talvez se ela não falasse, se não escrevesse, nada aconteceria.
– Abre os olhos. Olha pra cá.
Bárbara segura o papelzinho. Laura ergue o telefone, mostrando o cronômetro que ainda corria. Estão sorrindo. Dois minutos haviam se passado. Um risco apenas apareceu.
Antônia sente o corpo amolecer. Amoleceu tanto que por um instante achou que fosse cair. Bárbara a abraça.
– Tadinha, tá tremendo.
Laura coloca as mãos em seus ombros.
– Tu não tá grávida. Eu falei.
– Não tô grávida. Devo estar com uma doença muito horrível.
– Palhaça.
– Vamos lá, vocês duas, que o show já vai começar. Fila B6. Cadeiras 71, 72, 73. Vamos, vamos. E todo mundo lavando as mãos.
No caminho, Antônia lembra uma noite, muito tempo atrás, em que viu um teste de gravidez na lixeira de outro banheiro do mesmo Auditório Araújo Viana. Como julgou a desesperada que não pôde aguentar até chegar em casa.
Cuspiu para cima, caiu na testa.
Fernanda trabalha como tradutora e revisora de texto há mais de 15 anos, ajudando muita gente a se comunicar. Em 2022, finalmente criou coragem para escrever e compartilhar as próprias ideias. Mora em Porto Alegre (RS) com a filha, Olívia, e a cachorra, Violeta.
@fkpeixoto