A CAIXA
A moto parou na esquina da lanchonete às 16h20; estava atrasada vinte minutos. Na mesma mesa de canto, abaixo de um crucifixo de madeira – uma jovem trajada num vestido preto longo de mangas bufantes e antigas, usando sapatilhas pretas e carregando grandes óculos por cima de um olhar temeroso – aguardava ansiosa o pacote. Em uma das mãos sustentava uma bíblia e com a outra acenava para o motoqueiro tatuado que segurava uma caixa. O entregador logo percebeu a garota, teve vontade de rir por um lapso de segundos, mas manteve a postura profissional e seguiu até ela entregando a encomenda. As mãos da garota acariciaram o pacote e um sorriso de canto se destacou em seu rosto. “Já é o quinto só esse mês, hein?”, comentou o motoboy parecendo querer uma proximidade com a moça. A jovem mudou a fisionomia o encarando duramente. “O que você tem a ver com isso? Faça o seu trabalho de merda e me deixe em paz ou reclamo do seu comportamento!”, pontuou firme. O rapaz baixou a cabeça, pediu desculpas e sumiu das vistas.
Ester já estava com seus dezoito anos e era o orgulho da família, dos amigos e acima de tudo, da igreja. Havia ingressado no curso de Teologia do Pastor Felício, considerado o melhor do alto sertão; também tinha sido a escolhida de sua turma para o estágio como missionária das obras de caridade da pastora Rosa. Uma menina honrada, pura e devota às causas do céu, assim como mandavam os preceitos da sua família que há mais de cinco gerações eram servos e servas do universo fantástico cristão. Como exemplos da comunidade, o currículo provocava certa inveja às tantas outras famílias que disputavam uma cadeira à mesa de jantar do pastor da igreja, honra esta que Ester e seus pais sempre tinham.
A jovem não perdia um culto, estava sempre atenta as regras e doutrinas bíblicas como uma boa seguidora do Senhor. Fazia trabalhos que nenhuma outra pessoa da sua idade queria desempenhar como por exemplo: limpar os banheiros da igreja em dias de reunião dominical; enquanto alguns de seus companheiros e companheiras de idade reclamavam, ela assentia com toda alegria e obediência desse mundo. Por sinal, obediência a igreja era uma de suas maiores virtudes, dedicava-se aos estudos bíblicos para sempre ter conhecimento profundo de como deve ser uma vida de expiação e retidão. E, nesse tom burocrático e narrado em tom formal, a maioria das pessoas descreviam Ester.
Na verdade, quando a noite caia e ela retirava toda a caracterização diária, o travesseiro era quem a consolava enquanto observava as mais de trinta caixas rasgadas empilhadas por detrás do guarda-roupa, escondidas do medo da crença. Era seu segredo com Deus, tinha um acordo com essa entidade Maior que nunca tinha visto, mas acreditava que existia e, assim, mantinha a tradição da promessa ancestral entre divino e humano: o segredo guardado pelo mistério da fé. Seus pecados estavam confiados a quem por direito pertencia e o peso de sua existência se misturava com a divindade num elo de amor e ódio. “Sou uma boa filha, sou uma boa filha, sou uma boa filha...”, repetia até adormecer. No dia seguinte, tudo voltava ao estado de normalidade preferido de sua família: ir à igreja, entregar donativos, cursar teologia e não perder um culto nem mesmo se doente estivesse. As caixas tomavam de conta da mente dela, não via a hora de chegar em casa para abri-las, era uma explosão cada vez maior, pedia ao Senhor que aquilo não a consumisse mais do que deveria. Mas consumia, e vez ou outra se via viajando imaginando como seria o conteúdo dessa vez. E nesse êxtase, rodopiava enquanto lavava o chão do templo e quando alguém a via nesse estado, exclamava dentro da personagem que ali habitava, “como é bom servir ao senhor!”, e os observadores se regozijavam. Os jovens mais invejosos da disciplina evangélica de Ester, torciam o nariz para os elogios que a moça recatada e devota recebia. Tobias era um deles, conservador desde criança, pregava na escolinha para os amigos temorizando o quanto Deus os castigaria se eles não entregassem os seus lanches para ele comer. Fartava-se de seu dom da pregação ensinado por seu pai que havia aprendido do avô e assim transmitido por gerações e gerações.
Durante os últimos seis meses, foram mais de trinta e três caixas entregues a Ester no mesmo lugar, sob as mesmas condições de segurança e todas bem aproveitadas por ela. “Essa será a última vez!”, foi o que sussurrou com as mãos sobre a bíblia enquanto saiu caminhando com o embrulho apertado contra o corpo. O celular piscava a cada três segundos mostrando o nome “Tia Rute” como mensagens não lidas. Precisava chegar a tempo, tinha se atrasado bastante e, provavelmente teria que entrar pelos fundos para não ser vista com a caixa.
Os pés da jovem pareciam volitar pela calçada de tão rápido que ela andava. De repente, como um pesadelo advindo de satanás, parou num susto. Na sua frente estava o maldito Tobias a encarando. Seus olhos desceram ao chão, sua língua tateava pela boca buscando saliva e a caixa foi apertada ao peito. Indiscretamente, o rapaz magricela apontou para a esquina e começou a questionar quem era o motoqueiro que ela estava esperando e, com ar de superioridade, perguntou o que estava dentro. Nem nos seus piores pesadelos com aquele demônio em formato de jovem pastor, Ester acreditou que esse momento chegaria. Suas unhas arranharam a fita adesiva da embalagem e seu respirar ficou cada vez mais ofegante. O apocalipse poderia acontecer ali, naquele momento, Tobias era o pior de sua espécie e poderia destruir a vida dela em segundos. Enquanto pensava mil maneiras de safar-se daquele projeto de satanás na sua frente, o jovem tomou-lhe a caixa de suas mãos e saiu correndo pela avenida. Ester ficou paralisada nos primeiros segundos mordendo a bochecha em estado de pânico, um autoflagelo para aliviar sua vontade de sair da personagem doce, gentil, e boa filha; mas seus músculos contraídos pela adrenalina pareciam ganhar força e ela correu atrás do infeliz.
As sapatilhas brilhavam enquanto ela tentava vencer a maratona improvisada e ia contornando esquinas e empurrando pessoas para alcançar o seu desejo. “Ester é uma boa menina, nunca se meteria com escândalos”, dizia o pai enquanto assistia reportagens sobre jovens aproveitando a vida em botecos. “Minha filha é muito educada e gentil, será uma boa esposa e uma excelente mãe”, afirmava a mãe para as amigas do grupo de oração. “Minha irmã é muito certinha, gente, nunca que fugiria para ir a uma festa, Deus é mais!”, comentava a irmã com as amigas do colégio. “Ester é obediente e Deus cuida dos obedientes e lhes dão bons futuros, longe das perversões mundanas”, pontuava o pastor a seus familiares. Boa menina, educada, certinha, obediente... De súbito, saiu dos seus pensamentos ansiosos quando sentiu seu corpo pesar ao tropeçar num buraco no contorno da esquina e cair ao chão. Ao olhar para trás, Tobias deixou o precioso cubo também cair. A caixa girou três vezes antes de mergulhar numa poça d'água. Os olhos da garota ficaram esgazeados. No chão, com uma parte do vestido rasgado e o cabelão esparramado na calçada, despejou duas lágrimas. Uns rapazotes vestidos em ternos folgados e segurando bíblias pesadas acudiram a garota. Seus olhos apertavam para enxergar a caixa de papelão encharcada do outro lado da rua.
Tobias se levantou e como um algoz ferido rumo a destruir a vida do próximo, chegou a caixa antes que ela alcançasse. As mãos da garota cerraram em punho, sua glote mexeu quando engoliu em seco, ficou observando os segundos em que ele rompia o lacre da fita adesiva e enfiava os dedos enormes abrindo um buraco na caixa e colocando o olho para ver o que ali havia. Como em um filme de ação quando uma bomba está prestes a explodir porque um estúpido homem tentou desarmá-la antes da hora, a jovem Ester ficou em pânico, seu corpo parecia estar mais pesado e piscou três vezes atordoada enquanto balançava a cabeça em negação; ombros caídos como quem parece se render ao irremediável. “Senhor, por que me abandonastes? Não Deus, por favor, não faz isso comigo. Temos um trato!”, fez uma prece mental rápida.
O garoto magricela se lambuzando de curiosidade, encaixou o olho no buraquinho aberto e enrijeceu os músculos da face transformando seu gracejo inicial em uma cara dramática de espanto quando arrepiou-se inteiro com o que enxergava naquela caixa. Não seria possível, dizia o seu rosto empalidecido. Ester, que respirava lentamente, observou o drama do nefasto rapaz. Tobias engoliu a saliva devagar, parecia não ter reação àquele momento; numa cara de profunda ira, caminhou até a garota. Nesses instantes, Rute saiu do templo e gritou por eles. Ester arrancou a caixa das mãos dele enquanto a velha chamava todos com entonação irritada. Os dois se encararam e, por fim, Ester entregou um sorriso malicioso. Tobias abençoou-se três vezes antes de tornar os olhos à velha. Tentou explicar a tia o que estava acontecendo e nesse tempo Ester desesperadamente amassava a caixa molhada sob o vestido apertando entre as coxas magras. A senhora aproximou-se, agarrou os cabelos lisos e negros da garota e prendeu-os com liga de dinheiro, depois lhe deu uma bronca e apontou para a porta do templo com autoridade. Tobias, desesperado, ainda tentava avisar sobre a caixa, mas a velha estava furiosa com o atraso dos jovens.
O pacote roçava entre as pernas dela e um respirar profundo era externado enquanto caminhava devagar. No templo, umas sessenta pessoas estavam com as mãos erguidas ao alto, balançando de um lado para o outro em movimento lento. Muitas tinham os olhos fechados em forte apelo e algumas bocas balbuciavam palavras de encorajamento. Parecia um grande torpor, um grande gozo coletivo. No púlpito, um homem avermelhado com sotaque britânico entoava cânticos com a mão sobre a bíblia.
Ester estava zonza, seu olhar dilatado não conseguia enxergar todos ali e correu em desespero até o banheiro. Estava febril, trêmula, em sudorese. Dessa vez seria a última vez, tudo ia desmoronar quando aquele culto acabasse e Tobias revelasse o conteúdo da caixa. “Boa filha, educada, certinha, obediente”, repetiu mentalmente.
Devagar, dilacerando o papelão molhado no roçar das coxas, adentrou ao recinto estreito e fechou a porta dando duas voltas na chave. “é a última vez, última vez, última vez...”, repetia enquanto seu corpo potencializava as reações. Abriu o pacote e tirou de dentro um objeto siliconado de 14 cm em cor terracota, tocou delicadamente abrindo a boca excitada. Respirou fundo em êxtase e, num movimento rápido, encaixou-o debaixo de sua saia e observou seu reflexo no espelho até gemer revirando os olhos.
Paraibana, natural de Patos, interior do estado. Tem 31 anos, é Jornalista e atualmente mora na Capital João Pessoa, onde trabalha com assessoria de imprensa e comunicação popular. Como escritora, é feliz no campo das crônicas e contos, inventando ou retratando ‘causos’ do sertão da Paraíba. Acredita que a escrita a salva todos os dias e que é preciso muita coragem para (escrever) ser feliz.
@polys18