Diário da Quarentena - 773º dia – 28 de abril de 2022
Dezoito anos depois
Dá passos largos rumo ao grande portão. Um agente segue ao seu lado, apressando o passo para conseguir acompanhá-lo. Tem pressa, já ficou tempo demais naquele local. Por um segundo, desvia o olhar do portão, olha os grandes muros, vê as armas e os agentes e as terríveis concertinas. Volta seu olhar para o grande portão e segue.
O portão se abre ao mesmo tempo em que todos ao agentes nos muros próximos viram seus fuzis e metralhadoras para aquela direção. Para. E fica. O agente, acostumado com esses momentos, não o apressa. Deve ter ficado uns dois, três minutos talvez, ali, mas foi como se tivesse ficado os dezoito anos, o tempo de sua pena.
As lembranças visitaram-no naqueles breves minutos.
O dia que chegou, ainda em seus 22 anos, o medo, a primeira e mais longa de todas as noites. Dormira no chão, sem colchão. “Dormira” é força da expressão pois o medo era tanto de ser morto naquele primeiro dia que não pregara olho.
O primeiro não-almoço, quando aprendeu a primeira regra: novato não come nos três primeiros dias (o suficiente para não morrer de fome, não adoecer e ninguém ir pra solitária).
O primeiro “boquete” que teve que fazer, engolindo o nojo, a macheza e quase que outra coisa, restando-lhe o consolo de não ter os dentes todos quebrados.
Os três dias seguidos na solitária por ter reagido a uma humilhação: esmurrou um detento que queria obrigá-lo a comer a comida em que havia cuspido.
As leituras na cela para diminuir dias da pena, os banhos de sol sempre esperando por uma briga que começava a qualquer momento entre as facções.
Um episódio especial e, claro, inesquecível de tão doído, veio-lhe à memória antes do primeiro passo para a liberdade: o dia – o primeiro e o último daqueles dezoito anos - em que sua criança, uma menina de 9 anos, foi lhe visitar. Brigado com a esposa, que nunca o perdoara, recusara-se a acompanhar a menina, que acabou por entrar sozinha na sala. Sozinha, chorando desesperadamente, sangue escorrendo pelas inocentes perninhas finas. Ele estava mesmo apreensivo, já que a visita estava atrasada quinze minutos, o que não era normal.
O ódio brotou feito cachoeira de seu peito. A menina nada falou, não tinha condição alguma de pronunciar palavra que fosse. Apenas olhou o pai, que, por causa da burocracia, não via desde a prisão, havia dezoito meses. E, por causa da ruindade alheia, não viria nos anos seguintes.
A vontade de abraçá-lo, de receber seu carinho de pai, contar de sua vida, da escola, do novos vizinhos foi substituída pelo vazio que olhava o pai mas não o via. Contendo o ódio – o que aprendera ali – enlaçou-a em seus braços, o sangue da menina sujando sua roupa cor laranja, e o choro a dois jorrado nas costas de um e de outra. Violentada, estuprada, morta em sua inocência pueril por monstros a que o Estado chamava gentil e ironicamente de “agentes penitenciários”.
Ao final da visita, fê-la prometer que nunca mais iria àquele lugar. Promessa cumprida, tanto num como noutro sentido: agora ela tem vinte e cinco anos, ele sequer sabe qual é seu rosto. Mas sabe que ela milita na ONG Maria Vai Com As Outras, entidade de defesa dos direitos da mulher.
Ele dá um passo, não olha para trás e segue para uma nova vida.
É assim que estou me sentindo hoje: numa nova vida. A partir de hoje, segundo os protocolos sanitários, maior parte da população vacinada, números de mortes chegando a zero, não mais precisarei usar máscara Tive uma manhã maravilhosa! Na sala de aula, vi os rostos de meus alunos, que nunca vira antes. Voltei a ver os rostos de minhas colegas professoras, das meninas da cantina, das faxineiras, do Sr. João, o “faz tudo”. Hoje respiro o ar puro de Belo Horizonte, hoje, respiro liberdade.
Sinto-me como quem acaba de sair de um presídio... dezoito anos depois.
Reinaldo Fernandes é autor de Trilhas, Sob Suspeita, Minha Vida é Reticências e 2020: o ano que não foi. Acredita nas pessoas, nas montanhas, mar e lua cheia. Gosta de ler, fotografar, bater papo, colher verduras no quintal. Venceu vários prêmios literários, como o 1º lugar no Concurso “Cidade de Ouro Branco” e tem inúmeras publicações em revistas literárias nacionais e várias antologias.
@reinaldo.fernandespt