Os Invisíveis
I
Estava sentado na beira do balcão do bar do Jegue, no celular olhava os alertas de emprego e pagava a mensalidade desse aplicativo de vagas praticamente inútil. Um serviço que se aproveita para lucrar no desespero de quem quer encontrar trabalho. Enfim, editei meu perfil para esconder o bacharelado e poder competir às vagas com menores requisitos, visto que além de eu não ter outros diplomas e cursos na minha área, existe um estigma ao redor do profissional que atira para todo lado, que claramente é o meu caso. A esta altura do campeonato, depois de dois anos desempregado, duas pandemias, qualquer coisa que pague o aluguel já estava de bom grado, reclamei.
O meu amigo ouvia cismado, usufruindo, por assim dizer, daquele vento quente de monóxido de carbono que lhe batia na cara a cada carro que passava. Até que, em uma pausa nos meus queixumes sobre o desemprego, observou a esmo:
— Esse telefone tá escutando o que eu falo, Roberto! — essa ladainha era toda semana, cada vez um episódio novo com mais detalhes e provas cabais de que os telefones eram, na verdade, usados para ouvir nossas conversas. Eu pensava como seria possível que alguém se ocupasse em ouvir nossas reclamações. Toda vez que ele falava sobre isso, eu imaginava um imenso galpão cheio de pessoas com fones, ouvindo e anotando tudo que a população mundial fala em todos os milhares de idiomas todos os dias, o dia inteiro. Uma cena brutal. Retruquei por educação, mas ele continuou:
—Você nunca reparou que basta falarmos qualquer coisa e lá está! A coisa aparecendo nas redes, nas fotos, até conhecidos falando sobre a mesma coisa! — que coisa? perguntei com preguiça.
— Qualquer coisa! Eu admiro que você não tenha percebido isso ainda. Pois teste, fale “banana-prata” aí perto do telefone e espere!
— O quê?! E para quê serviria isto?
— Não vês? Se falas “banana-prata” apenas uma vez e eles detectam, pronto! Você só verá notícias, imagens, amigos falando de banana-prata até que você sinta um desejo prenhe, pense que a ideia foi sua e compre a maldita banana!
— Se for assim, então, seja lá quem estiver ouvindo o tanto que eu falo de emprego, eles deveriam me mandar logo uma vaga em vez dessas merdas que exigem mil diplomas e dez horas de trabalho mal pago!
— Que ingênuo, quem disse que estão te ouvindo para te beneficiar, meu caro?— começava a me divertir com a prosa e provoquei o conspiracionismo do homem:
— Sim, você viu que aquela Alexa mandou uma mulher apunhalar o próprio coração para o bem do planeta, e não tem muito tempo os músicos e os advogados foram substituídos por esses robôs que falam e cantam com a destreza humana.
Lúcio fitava o outro lado da rua com um olhar cismado, deitou uma nota amassada de cinco reais na mesa, levantou com a mão nos quadris alongando a coluna cansada. Queria ficar mais nessa conversa, mas já estava na hora de voltar para o restaurante, bater o ponto onde trabalhava servindo mesas e cozinhando.
— Tchau, vou falar “banana-prata” no caminho de volta, vamos ver quantas bananas aparecem até o final do dia — provoquei. Paguei meu café e também fui embora a pé.
Ao cabo de mais uma semana de buscas, consegui uma entrevista para a segunda-feira de manhã, em uma distribuidora de caixas de papelão. O cargo era almoxarife e não era necessário ter experiência anterior, só saber ler, escrever e tomar ordens e ao que me parecia, me cabia bem.
Na segunda-feira, às onze, lá estava eu aprumado com meu uniforme de entrevista: minha camisa risca de giz e a calça preta. Me sentia um pouco arrumado demais para o ambiente que mais parecia um depósito abandonado numa rua sem saída. Me apresentei no interfone ao que uma porta de alumínio destravou permitindo a minha entrada. Caminhei até o que parecia uma recepção vazia, quando chegou uma a mulher muito maquiada, equilibrando-se num salto agulha, fiquei mais à vontade com relação às minhas roupas.
Ela chegou fazendo barulho no caminhar e trazia uma pastinha transparente onde se podia notar o meu currículo impresso com outros papéis. Com um gesto cordial me apontou logo à frente a porta entreaberta de uma sala pequena e quente. Entrei primeiro, ela em seguida fechou a porta atrás de nós e se encaminhou para o outro lado da mesa no centro da sala, onde havia um computador antigo. Consegui ver de rabo de olho que haviam outros currículos na pasta e pela sua cara cansada era certo que antes de mim muitos outros também se submeteram ao cargo. Mesmo tendo meu currículo nas mãos, perguntou meu nome, ao que respondi e também perguntei sua graça.
— Adriana. Pode se sentar, por favor — recomendou apontando uma cadeira com o assento manchado à minha frente.
— Então, Roberto, tudo bem? Vamos dar uma olhada aqui… — fez ela enquanto clicava e esperava algo que carregava muito lentamente na tela do computador. Para evitar o silêncio constrangedor, virou-se pegando meu currículo e fingindo que lia. Voltou a olhar a tela e novamente analisou meu currículo, olhou para a tela de novo num looping entediado.
— Hum… — ruminou com desinteresse. Até que o reflexo em seus óculos denunciou que o download do que ela queria já estava disponível na tela
— Bom, vamos lá. Vejo aqui que você trabalhou como técnico de manutenção de equipamentos marítimos em dois mil e vinte dois e de lá para cá não tem mais registros na sua carteira. Me estiquei um pouco para tentar ver o que ela via fingindo que me ajeitava na cadeira. Claramente ela não lia o currículo que enviei pelo aplicativo de vagas, mas algum sistema onde constava toda minha carreira e escolaridade.
— Você tem outras experiências? — prosseguiu sem parar de rolar a tela do computador.
— Sim, eu trabalhei por conta própria vendendo itens para festa infantil.
— Festa infantil? Como sua carreira tomou esse rumo? — comentou com a licenciosidade de quem gosta de ouvir histórias de conhecidos que fracassaram na vida. Só então percebi que ela lia no sistema o meu antigo currículo original, onde ainda constava meu bacharelado em engenharia e minha aventura como trabalhador informal ou como gostam de dizer ‘empreendedor’, e não o que enviei pelo aplicativo, onde oculto essas informações irrelevantes para o cargo de auxiliar de almoxarifado.
— Bom, você sabe, depois da segunda pandemia, não consegui recolocação por muito tempo, tive que me virar com o que tinha e acabou dando certo. Montei essa empresa, me estabeleci nesses últimos anos assim.
— Entendi, então era uma empresa mesmo? E o que houve? — perguntou ela francamente interessada. Ao passo que expliquei, que era uma empresa registrada, onde eu revendia decoração para festas.
— Certo, Roberto. Você mesmo vendia os produtos de porta em porta ou tinha funcionários? Conta mais sobre como sua empresa operava nesse setor— aprofundou dando uma ênfase maldosa à palavra ‘empresa’ e meu desconforto atingiu o limite.
— Eu era um distribuidor de artigos festivos, não vendia de porta em porta, tinha um galpão e também um sistema online. Mas, você sabe né — continuei bem desconfortável — empreender neste país, com as taxas, os impostos, os encargos, os funcionários, incumbências, responsabilidades, compromissos... — nesse ponto fiquei tão nervoso que comecei a disparar sinônimos. Não queria que a conversa tivesse tomado esse rumo. Bem se sabe o quanto os empresários apreciam empregados que se arriscam a ser os primeiros entre os últimos. Assim a entrevista ia de mal a pior. A moça não tirava os olhos do computador, ignorava meu currículo impresso e lia de cenho franzido dados de um sistema que parecia ser o resumo da minha vida inteira.
— Certo, e como seria para você voltar a ser um funcionário e ainda num cargo tão fora da sua formação acadêmica?
Bingo! Era exatamente o que eu temia. Minha empresa de festas e meu diploma novamente acabando com minhas chances de arrumar um emprego medíocre. Respirei fundo.
— Acho que seria ótimo ter essa experiência nova — comecei me ajeitando na cadeira para parecer mais confiante. — Voltar ao mercado aprendendo uma nova função tão importante como essa, contribuir para a empresa, trabalhar em uma equipe, ser um bom funcionário, crescer com a companhia... — Comecei a disparar novamente, não poderia ser mais superficial e aleatório, era explícito que eu estava muito contrariado. Meu jogo de palavras estava digno dos criptogramas da revista Coquetel. Adriana me ouvia com desconfiança e desinteresse.
— Que ótimo, Roberto. Entendo que a essência do empreendedorismo é assumir riscos para iniciar e administrar o próprio negócio, né? Não trabalhar para outra pessoa é um risco, você não acha? — fez ela bem cínica fechando a pastinha de currículos e aparentemente a possibilidade de me contratar.
— Sim, claro que eu acho, tanto que fali! — finalizei com aquele risinho amarelo do guri que foi mal o ano inteiro, mas ainda espera o ponto por bom comportamento para sair de férias.
— Certo, puxa que pena, né, realmente tempos difíceis. Conte então, quais são seus pontos fortes?
E lá se foi mais uma entrevista inútil. Nem um e-mail de ‘fica para a próxima’ a Adriana teve a bondade de me enviar.
II
Sexta-feira, noite quente e úmida, fui ter com Lúcio no Jegues para a nossa cachaça, o alívio temporário da semana. Ocupamos a mesa suja do canto para debater os assuntos do dia. O bar estava cheio, vozes masculinas se elevando cada vez mais alto à medida que a noite avançava. Um dos homens, um rapaz novo, moreno e mal-encarado, balançava sua cadeira enquanto falava de futebol, seus olhos brilhavam com uma paixão infantil. O outro, um homem mais velho e cansado, escutava atentamente, balançando a cabeça de vez em quando. E assim, enquanto a bebida e o cigarro circulavam, eles discutiam o presidente, o futebol e a crise, riam e compartilhavam homo afetividade dissimulada de cultura masculina.
Assistíamos à televisão que passava o jornal legendado sem som. Já um pouco entediado, peguei o celular para olhar a hora e lá estava uma propaganda de cobertores de casal e barracas de acampamento. Mostrei para o Lúcio, provando que meu celular estava surdo.
— Estas barracas são boas, Roberto e olha isso, cobertores com sessenta por cento de desconto, por que não renova seu enxoval? — riu-se.
— De fato, preciso de roupas novas e lençóis limpos — suspirei.
— Apareceu a banana para você? — insistiu avançando curioso para a tela do meu celular.
— De novo esta história? Claro que não, ninguém está a nos ouvir!
Essa afirmação acabou me soando um pouco espiritual, eu já estava embriagado. Contei superficialmente sobre as inúteis entrevistas que fiz e a má sorte que me acompanhava desde o divórcio. Lúcio ouvia com o semblante insatisfeito de quem escutava a mesma história pela enésima vez. Concordamos que meu estado era miserável e ele começou a ponderar sobre maneiras de elevar minha moral.
Para ele, que nunca havia lido um livro inteiro, o sucesso de um indivíduo era diretamente proporcional à quantidade de trabalho realizado, por isso tinha dois empregos e trabalhava como um animal jovem. Ele valorizava muito francamente a autorresponsabilização, pregando que somos os únicos responsáveis por nossos êxitos e fracassos, independentemente dos contextos sociais, educacionais e de existência. Trazia sempre pendurado ao peito uma medalha sem santo a quem recorria como gesto pacificador toda vez que algo o cismava.
Coçava a cabeça e projetava o queixo para frente na argumentação, tinha as mandíbulas fortes e brutas, mas um trejeito manso e tímido. Sua mentalidade questionadora me agradava, apesar do seu pouco estudo e tendência às conspirações e teorias sem base científica nas quais desperdiçava tempo estudando. Por ignorância, mesclava conceitos políticos ditos neoliberais com umas filosofias coloridas de rebeldia pacífica, muito em voga nos anos setenta. Para ele, a minha situação de desamparo, desemprego e fracasso era uma derrota pessoal. Um fracassado por não ter sido capaz de gerir minha vida de maneira esperta, ter deixado boa parte dos meus bens para minha ex-esposa e não ter sido capaz de antecipar os riscos das minhas empreitadas. Seus ideais eram um pouco contraditórios, estava completamente perdido no conceito das coisas, fisicamente aparentava ter mais idade, mas mentalmente era um pouco infantil, mas seus julgamentos não me ofendiam; ele queria genuinamente o melhor para mim e me ajudava como podia. Para ambos era agradável compartilhar pensamentos opostos, discutir e imaginar cenários em que poderíamos solucionar problemas do mundo ou um do outro em uma espécie de terapia informal. Deixei a conta para ele e fui para casa cambaleando.
Na manhã seguinte, antes mesmo de levantar, olhei o celular com pouca esperança, nenhuma nova mensagem, nem novas vagas e nem respostas. Já eram nove horas, Lúcio já estava no restaurante, então pensei em passar lá antes do movimento do almoço para pegar uma quentinha. Lavei o rosto e saí.
O restaurante ficava a duas quadras do meu apartamento, o bairro estava tranquilo e o clima ameno, o pouco movimento nas ruas fazia a caminhada agradável. Os imóveis antigos com suas fachadas desgastadas pelo tempo ou pela miséria faziam sombra para os idosos que perambulavam ao redor dos sacolões, loterias e mercados e para algumas pessoas que passeavam com seus cães cujas fezes nunca seriam recolhidas das calçadas esburacadas.
Parei em frente ao restaurante, acendi um cigarro, sem entrar, esperei ser visto. Lúcio acenou com a cabeça da janela da cozinha escura. Minha situação não estava nada boa, estava dependendo dessas quentinhas extraviadas para me manter. Antes do gerente chegar, eu pegava um prato feito. Não entrava no restaurante para evitar os olhares interrogativos dos outros funcionários e sem trocar palavras, a sacola plástica com a quentinha era deixada na mesa mais perto da porta, como quando na blitz você coloca cem reais na mão do policial para poder seguir sem a documentação do veículo.
No caminho de volta desci pela outra rua e vi um anúncio de emprego colado na porta de um escritório. Era um depósito de bebidas e dizia apenas ‘estamos contratando’ e um endereço de e-mail para enviar o currículo. Tirei uma foto e corri para casa para enviar meus dados com calma. Depois do almoço, copiei o endereço da foto para um pedaço de papel e tentei enviar meu currículo para o e-mail da empresa, mas a mensagem não foi transmitida, estava sem internet. A conta do celular foi cancelada porque usei o dinheiro para inteirar no aluguel. Uma sombra densa pesou meus pensamentos. Eu era um derrotado mesmo. Minhas economias acabaram, minha internet acabou, minha dignidade estava indo pelo mesmo caminho, mas ao menos naquela hora eu estava alimentado. Deitei e dormi o resto do dia. Acordei com a ligação do Lúcio, lá pelas dezoito horas.
— E aí, camarada? — perguntou.
— Acordei agora, nada ainda.
— Venha tomar uma, eu pago.
Me levantei e lavei o rosto, meus olhos estavam afundados na cara, notei que estava emagrecendo. Ajeitei o cabelo e saí. No bar, contei da vaga do depósito e que não tinha como pagar a internet.
— Você ainda paga para usar a internet? Por que não usa a da rua?
— Como assim?
— A internet da rua, do satélite, do bar, das lojas… todo lugar tem internet grátis, ora!
Eu não entendia absolutamente nada disso, sempre tive tudo já pronto e configurado. Lúcio conectou a internet e então recebi algumas mensagens, o celular fez barulhos e vibrou em descontrole por alguns segundos. Eu vibrei por dentro e sem piscar li cada mensagem. Panelas de alumínio pela metade do preço, cobertores imperdíveis novamente, e um e-mail da igreja Mão Estendida, sabia lá eu que diabo era isso, reclamei.
— Como que os bíblias têm seu e-mail? — começou — o tempo todo, estão escutando você e sabem da sua situação!
Lúcio chamava os evangélicos ou qualquer outro religioso de ‘bíblia’. Li rapidamente a mensagem da Mão Estendida, davam muita ênfase à ‘minha situação’ e enviavam cinco dicas para ajudar quem está em sofrimento. Senti um mal-estar, na hora não compreendi muito bem por quê. Lúcio leu a mensagem e começou a especular como os meus dados teriam ido parar no e-mail da igreja, porque estariam me mandando uma mensagem tão específica sobre miséria e sofrimento justo naquele momento em que eu passava por uma crise financeira e continuou falando coisas que eu não queria ouvir.
— Olha, você sabe que respeito muito sua opinião, mas isso está ficando muito chato! — desabafei afastando minha cadeira. Eu já estava cansado desses assuntos de conspiração enquanto eu tinha coisas sérias na cabeça. Lúcio era um rapaz trabalhador, nunca estudou, mas gostava de ler revistas e assistir a esses vídeos com explicações duvidosas sobre teorias científicas. Ele tinha até um canal de vídeos na internet onde expunha sua opinião sobre os mais variados temas. Peguei o papel com o e-mail no meu bolso, enviei a mensagem com meu currículo e fui embora emburrado.
Apaixonada pelas palavras desde cedo, criava histórias e produzia pequenos livretos na infância. Mais tarde por meio dos blogs, publiquei poesias e pequenos contos online. Mergulhei na literatura encantada com Gabriel Garcia Marques, Alan Poe, La Fontaine, Lima Barreto, entre outros. Gosto de histórias de fácil identificação e entendimento, mas que tragam reflexões ou aquele incômodo pensativo.
@eusandrabreu