Queimando por dentro
Eu do lado de fora com dois irmãos e minha mãe sentada numa cadeira de plástico. Fazia calor. Já havia me casado, separado e morando há anos com minha filha Lara em outro conjunto. Com ela e o inútil do marido, mas era o pai da minha neta. Nessa hora, no entanto, eu morava na casa de meus pais como se nada disso tivesse sentido. Começou assim. Os policiais armados, do Exército ou da Rotam, vestiam-se rigorosamente com fardas opressoras, dentro de casa, na casa em que eu morava quando criança. Cinco policiais incomunicáveis não diziam quase nada, apenas que tudo corria bem e que não iriam demorar se estivesse tudo bem. Dizia de uma maneira educada, aquele que aparentava ser o chefe e a gentileza dele nos colocava mais medo. No lado de fora vi duas caminhonetes S10 amarelas com sirenes ligadas sem som, apenas aquelas luzes avermelhadas rodopiavam enlouquecidamente feito uma sessão de hipnose. Os motoristas vestiam macacões jeans da Lee e camisas brancas de algodão encostados nas portas fumando de uma maneira bem charmosa. Entrei impaciente perguntando o que eles queriam afinal, da ordem judicial e o porquê das armas todas, de que nos constrangiam e tudo o mais. Não temos esse direito? O tenente comandante da operação, segurando uma submetralhadora pressionando-a no coração e com a identificação no velcro arrancada de cima do bolso, explicou que cumpriam ordens e não sabiam exatamente que ordens e nos mandavam para fora gesticulando levemente as mãos. Eu saí e perguntei o que ela fez de errado ou escondia dentro de casa. Minha mãe ficou confusa e disse que não sabia, não sabia ao certo se realmente tinha feito alguma coisa de errado ou escondido algo dentro da casa. Pensou por um momento ter deixado embaixo da cama ou em cima do forro, mas não lembrava onde havia guardado o dinheiro que retirou do banco, por ter sonhado com meu pai já morto dizendo para ela sacar a poupança de mais de dez anos. Vizinhos que não faziam questão alguma de se esconder foram todos para o meio da rua assistir aquele espetáculo de poder e humilhação. Depois de uma hora e meia revistando e bagunçando toda a casa, os policiais saíram enfileirados e o chefe disse que não encontraram nada, mas que o caso continuaria ao entregarem para minha mãe uma tal intimação. Eu li o que estava escrito naquele papel, mais ou menos, e mandei o tenente sem nome para a puta que o pariu e acordei.
Nunca tive certeza de como havia começado. Esses pesadelos, por exemplo, vinham antes com mais frequência. Todas as noites. Ao menos três noites por semana. Sinais e ao mesmo tempo sintomas do que me acometia. No fundo, se relacionava com tudo que passei e foi se agravando com a profissão que escolhi, mais ainda de como se dava o trabalho desta profissão.
O magistério não foi exatamente uma escolha, sonho de infância ou de adolescência. Nem de meus pais. Formei em Letras casualmente sem ignorar o fato de ter sido a única da família de cinco irmãs e de mais tarde ter me identificado com suas disciplinas. Fiz concurso e me tornei professora do estado aos 28 anos e meus pais se esbaldaram de orgulho. Já havia lecionado para crianças em escolinhas de bairros da periferia da cidade e deixei de gostar de crianças por esses tempos. Gritavam tão estridentemente que até hoje me sinto torturada por elas balançando sininhos em meus ouvidos. No estado, subi de séries e os alunos de idades e no início pareciam mais controlados, alguns até se mostravam interessados em aprender e eu em lecionar. Era jovem e pobre e queria deixar de ser pobre antes de deixar de ser jovem. Comecei trabalhando com uma carga horária de 100 horas mensais, que queria dizer um turno por dia. No resto aproveitava da melhor maneira: fiz especialização em literatura, frequentava academia, cinemas, fazia tapiocas, cafés e sobremesas. Nas noites, até às 10h, eu corrigia os trabalhos e provas dos alunos e até ganhava por isso, a título de hora-atividade. Me esforçava o quanto podia para dar uma boa aula, com atividades extraclasses, pequenos passeios, visitas em bosques, museus e igrejas históricas.
Eu e Juarez, um dos seguranças da escola, nos conhecemos, nos apaixonamos e casamos. Quando Clara nasceu eu tinha 31 anos e o pai dela nos deixou três meses antes e eu nunca mais quis saber de homem em casa. Minto, ainda levei Mauro pra morar comigo, nos separamos seis meses depois e continuamos sendo amigos como sempre fomos, até hoje. As coisas apertaram. Passei para 150 e depois para 200 horas por mês e mais uma complementação para se chegar a um salário razoável, que deu para comprar uma casa no conjunto Cidade Nova e quitá-la em 19 anos, o carro sempre usado e sustentar minha filha e ajudar mãe e irmãs, na medida do possível.
Meu cotidiano no magistério passou distante dos dias da figura daquela tia dedicada e amável do aluno que, mesmo depois de velho, não esquece quem o ensinou a ler e escrever. Lecionava normalmente em duas escolas, às vezes em três; saía as 7h da manhã, parava para almoçar, voltava as 14h e saía de lá pelas 8h da noite, com um entulho de provas e trabalhos para corrigir; antes disso, cuidava das coisas da casa, das louças e das roupas sujas. Clara, na adolescência, se comportava como uma típica adolescente, eu a tolerava nesse particular porque não passava disso e de resto sempre foi uma filha companheira. Fazia de tudo para cumprir não somente o horário extenuante, mas também lecionar da melhor maneira. Numa escola cercada de perigo e o perigo entrava nas salas de aulas. Lembro do dia em que um de meus alunos, Jonatas, esnobou de minha cara balançando sua nota 9,5 aumentada pela diretora, o suficiente para passar de ano e começar a transformar em merda o resto das convicções que eu ainda possuía.
Em julho eram trinta dias de férias do professor e janeiro quinze dias de recesso do professor. A vida resumia-se nesse turbilhão de trabalho sem romantismo. Lazer: uns barzinhos com as amigas às sextas-feiras e de vez em quando aos sábados, para ouvir músicas, tomar cervejas com queijos, peixe frito ou calabresas e namorar e, às vezes, dormir nas casas desses namorados. Ouvíamos MPB e a O bêbado e a equilibrista, por João Bosco e Flor de Lis, de Djavan, as preferidas, foram aos poucos se tornando nas trilhas sonoras que embalavam meus pesadelos. Belchior sempre foi meu favorito. Carregava suas músicas em duas ou três fitas cassetes e na memória. Suas letras filosóficas urbanas se encaixam perfeitamente nas melodias incomuns e hoje ainda me atraem quando as ouço eventualmente nas rádios que se atrevem a tocá-las. No dia em que ele morreu comprei uma garrafa de vinho tinto seco e passei a noite inteira chorando sob o som de suas músicas e na meia noite li a poesia de seu poeta favorito, um deles, que dizia (e parecia estar me dizendo) “nunca mais”. Alguns dias atrás vi o Faustão no Domingão dele, aos berros, anunciando que Luan Santana foi eleito o melhor cantor do Brasil pela terceira vez.
Nas férias íamos, eu e Clara, passar finais de semanas em praias próximas: Outeiro, Mosqueiro ou Salinas. E esporadicamente viajávamos para fora do estado: Maranhão, Fortaleza e excursões de aposentados alegres e anestesiados, para o Nordeste. Minha filha casou com Rafael e tiveram uma filha, Sianne. Continuaram a morar em casa e me esforçava para não ser uma sogra detestável que eu certamente era. Voltei a gostar de crianças, de Sianne, quando estava na fase boa.
Quinze anos nessa rotina até os primeiros sintomas se manifestarem. Desejava que as segundas-feiras nunca chegassem, na mesma intensidade de que as aulas terminassem o mais rápido possível. Os finais se semana eram eternos e monótonos e neles fui mergulhando cada vez mais, jogada no sofá da sala ou na cama do quarto com a televisão o dia inteiro ligada em programações aleatórias, sem ousar desligar. A vontade dos barzinhos, músicas, namorados, viagens, foram se esvaindo sorrateiramente. Tomei consciência desses sintomas muito tempo depois. Um desânimo físico e mental. Não conseguia alcançar bons resultados com os alunos, embora voltando a me dedicar mais e mais ao trabalho. Numa dessas sextas-feiras cheguei em casa e me atirei na cama, com a roupa do corpo, fui levantada por Clara no fim da tarde de sábado, tomei e comi algo estranho preparado por ela e acordei na enfermaria de um hospital de emergência, sem conseguir compreender e explicar o que havia acontecido. Talvez tenha exagerado com os comprimidos, suspeitou a enfermeira. Isolada, sentimento de insatisfação, dificuldade de concentração, um fogo queimando por dentro de mim.
A coisa desandou muito mais quando ela se foi. Perder a mãe é uma das dores mais dilacerantes que o ser humano pode sentir. Essas palavras deixam de ser clichês quando ela se vai. Quando esvazia a cadeira de palha, deixa de te fazer perguntas indiscretas, de reclamar de o porquê não atenderam suas inúmeras chamadas, de vê-la cochilar, de não poder dizer coisas nunca ditas. Uma estrada sem fim. Eu não vi o rosto de minha mãe morta. Pensei que seria melhor ficar com as lembranças do jeito brincalhão e ao mesmo tempo ranzinza dela. Deixei de ver também as fotos e tudo o que me faziam lembrar de minha mãe. Não quis lembrar nada do caminho que percorri até o seu enterro: no carro de cabeça baixa, nas ruas sem casas, da inveja das pessoas sorrindo ou simplesmente caminhando. As ruas não tinham casas, as ruas não tinham fim. O dia que passei a considerar o dia mais triste da minha existência. Anos depois, quatro ou cinco anos, vi o quanto eu errei. Deveria chorar o que tinha pra chorar, abraçar o corpo e soluçar de dor. Permanecer a noite acariciando seu rosto, a testa, beijando-a a toda hora. Gritar a dor que eu sentia quando a enterraram e jogaram terra sobre seu corpo; depois pegar suas fotos e fazer um quadro e pendurar no meu quarto, sentir a dor do luto. Fazer viver os dias felizes que vivemos juntos.
Passei por médicos, indicados, recomendados ou não. Depressão? Melancolia? Estresses? Estafa? Solidão? Frescura? Ansiedade? Nada disso? De um para outro, diagnósticos diferentes. Tratamentos variados: Melatonina, “induz ao sono e proporciona um descanso tranquilo e revigorante”, deve ser evitada por pessoas com depressão. Depressão? Suspende. Diazepam, “esse é bom”. E se não for ansiedade? Tenta a Igreja Quadrangular, Espiritismo.
Fortes doses de remédios não traziam a cura. Continuava sem querer sair de casa, sem querer trabalhar. Na escola não queria sair de lá e nem de dar aula. Tudo tão confuso e cada vez mais angustiante. Cansei. Passei a acreditar que os médicos não adoeciam, não até precisarem de atendimento médico, o mesmo que eles relutam todos os dias em atender com dignidade. Continuei. Até encontrar Paula Alendy, uma psicóloga esquisita. Esquisita como o nome da doença que ela disse que eu tinha, conclusão que chegou com a simples leitura de meus exames e uma conversa unilateral em que somente eu falava. Em geral se vestia de vestidos longos e floridos distribuídos pelos seus quase um e oitenta; cabelos encaracolados e óculos fundo de garrafa. Fumava um charuto insuportável e eu nunca disse a ela que era insuportável. Falava compassadamente e quase sussurrando, do nada acelerava e vez por outra cantava. Síndrome de burnout. O que? Uma doença. Queimar por completo, o termo mais direto. Ela disse que atingia pessoas que, como eu, se submetiam ao trabalho excessivo, em horários prolongados e sem se dar conta. Passei a acreditar no acerto desse caminho clínico. Com a síndrome, as pessoas ficavam sem motivação, com sensação de esgotamento físico e mental, vontade de se isolar. Se irritavam com facilidade, pensamentos negativos, dificuldade de concentração, ansiedade, dores no corpo e insônia. Enquanto a doutora Paula falava as sensações e lembranças dessas sensações vinham em minha memória como imagens nítidas e perturbadoras.
Logo descobrir que tão difícil de ser diagnosticada, seria enfrentar o tratamento. Precisa reorganizar seu trabalho, a doutora recomendou, reconheça seus limites, relaxe, se divirta mais, frequente academia, alimentação correta e balanceada, deixe de pensar só em trabalhar. Como nunca, eu a ouvia atentamente com a mão no queixo, serena, uma calma que me surpreendia. O que ela disse eu aceitei no instante que falava; o tratamento, absorvi como se me dissesse: no almoço coma caviar, reveze com camarão rosa; no jantar tome uma taça de vinho do Porto com cubos de queijos suíço, mas não exagere. Pois não, respondia: uma semana em Angra dos Reis, me faria mal?
Na primeira oportunidade apresentei os laudos e recomendações. A diretora da escola disse que iria mostrá-los à diretora da Unidade Regional e chegaram à conclusão de que nunca ouviram falar dessa bendita síndrome e se eu quisesse trabalhar menos e me divertir mais bastava deixar duas turmas e ficar com uma turma. Danem-se, eu pensei em dizer às duas ao mesmo tempo, com a voz bem alta. Mas eu não estava louca a esse ponto. Não, a sugestão não se encaixava: trabalhar menos, significava ganhar menos, muito menos. Um turno nem me alimentaria; a prestação da casa levaria todo turno. E o resto?
Continuei a levar a vida de antes, como sempre. A diferença é que agora eu sabia o que eu tinha e o que deveria ser feito, com o agravante de não poder fazer nada, a não ser levar a vida como antes.
Num dia do final do mês de junho, um dos mais escaldantes do ano, comecei no turno da tarde, os alunos se arrumaram somente no lado direito da sala de aula debaixo do único ventilador que funcionava mal e porcamente. Fugíamos do sol que entrava por outro lado e, portanto, do calor infernal que ele provocava. Os que estavam do lado direito se chegaram mais perto da parede. Um amontoado de meninos e meninas torrando sob o calor de 40 graus. Sentia a cabeça estourando. E daí? A diretora da escola responderia. Pela terceira vez, Ricardinho, o capeta em forma de gente, recolocou os fones de ouvido do celular nas orelhas e começou a ouvir e passou a cantar novamente como se estivesse somente ele. Uns 11 anos e o mais alto de todos, bem mais do que eu. Há muito tinha deixado de me importar se os alunos prestavam atenção em minhas aulas. Só desejava cumprir o planejado e ir me embora. Mas, nessa hora sequer podia ouvir meus próprios pensamentos quando joguei com força o livro que segurava na mesa, corri em direção do Ricardinho e arranquei os fones de ouvido, quebrando em duas partes, pensei, mas desistir logo, enrolar o fio no pescoço dele com força e sair puxando-o feito uma mula empacada. O celular eu joguei e ouvi o barulho se espatifando na parede. Depois peguei pela gola da camisa do capetinha e saí com ele arrastando até jogá-lo no corredor. Não sei como fiz isso, lembro ainda o que disse gritando: se voltar eu te cobrirei de porrada, seu moleque do cão! Depois desse dia, além passar a responder processos administrativo e criminal, a diretora admitiu que eu precisava verdadeiramente de ajuda, acometida por algum distúrbio psicológico assemelhado à síndrome do pânico, depressão ou algo nessa ordem psiquiátrica. E somente assim consegui licença médica para tratamento, sucessivas licenças que ultrapassaram um ano, quase dois.
Me sentia recuperada. Digo isso por lembrar de quase tudo que sentia antes, como se agora estivesse fora de mim, ou melhor, daqueles dias. Continuei tomando alguns remédios, principalmente para dormir. Meus médicos diziam que era vício ou receio de voltar tudo de novo. Eu ria. Conseguia ouvi-los com serenidade e, mais importante, como se estivessem falando de outra pessoa. Um sentimento persistia, talvez com mais evidência: a vontade obsessiva de deixar a sala de aula.
A tão esperada aposentaria me encontraria em um ano, era especial e que, segundo disse o advogado do sindicato, poderia ser revogada por mais uma dessas reformas do governo e eu teria que passar mais cinco anos nessa vida. Eu a desejava como ninguém, antes dessa mudança. Sempre quis evitar sequer pensar na aposentadoria, seu significado maior: a velhice. Que porra de melhor idade. Nosso merecido descanso. Descanso? Tantas doenças que acompanham a velhice. Essa amargura toda deixei pra depois, passei a almejá-la, esse tal descanso do trabalho extenuante que me consumia. Lembrei do professor Danylo Amaro, lecionamos juntos em alguma escola, que falou da oportunidade de substituir uma professora no Presídio Estadual Metropolitano V. Com presos? Eu não precisava. Seria uma nova experiência, com pessoas que necessitavam de oportunidades para se ressocializarem. Eu disse que esse discurso não movia um músculo sequer de meu corpo e nem sabia se algum dia me comoveu. Reeducar presos, do mais perigoso ao mais inútil, de um simples ladrão de conservas enlatadas ao latrocida que roubou e matou a facadas sua vítima, foi o último dos pretextos. Danylo disse que o horário seria menor e havia uma gratificação a mais que ele não soube precisar o quanto. Esse ponto me chamou atenção e eu aceitei. Por mais um ano. Um ano e nada mais.
Walmir Moura Brelaz, 58 anos. Advogado em Belém, Pará.
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