O simbolismo presente no poema Ao volante de um Chevrolet pela estrada de Sintra (1928) de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa.
Sobre o autor:
O poema Ao volante de um Chevrolet é uma obra do heterônimo de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos e isso diz muito sobre a sua natureza, pois, segundo o que o próprio Fernando Pessoa manifestou, Álvaro de Campo é seu heterônimo mais histericamente histérico, que revela em suas obras traços de irreverência total a tudo e a todos, além de apresentar um desencanto com a modernidade - principalmente por pertencer a esta - e por fim, muita emoção em cada verso. Álvaro de Campos, assim como os demais heterônimos de Pessoa, tem uma personalidade única e uma biografia própria, é formado em engenharia mecânica e, no contexto em que se insere, de avanços tecnológicos e suas consequências na sociedade, tal fato influencia muito sua obra.
Sobre o contexto literário:
No tocante ao contexto literário, em Portugal experimentava-se do simbolismo Decadentista, do qual se destaca como principal característica o desconforto do poeta com a realidade e com o mundo nos âmbitos sociais e políticos, valorizando-se muito o mistério e a morte, temas não recorrentes outrora, no período de elevação do realismo, por exemplo. Além disso, destaca-se também a sensibilidade estética, na qual, para alcançar seus objetivos de mostrar o inefável e o mais fundo da alma humana, os escritores da época faziam comumente o uso de metáforas e musicalidade como elementos poéticos. Tais características manifestadas na arte e, especialmente, na literatura de Álvaro De Campos podem ser explicadas pelo contexto social vigente em Portugal, visto que o país vivia a era da máquina e do surto da industrialização, acarretando à população sentimentos de instabilidade, excitação e tensão nervosa devido à rapidez com que tudo começava a acontecer, a exemplo da fabricação levando a cada dia menos tempo, assim como a comunicação.
Outrossim, a moral familiar e social afetadas e decadentes também eram combustíveis a uma literatura de desprezo à realidade. Os tantos avanços tecnológicos não eram refletidos nos âmbitos espirituais da sociedade portuguesa, que ficaram pra trás.
Nesse contexto, segundo o próprio Fernando Pessoa, em Páginas Íntimas e de Auto interpretação (1966), o papel da arte seria cultivar o sentimento de decadência, assim como opor-se à realidade social que fundia a cada dia mais o homem à máquina. Álvaro de Campos, assim como seus compatriotas, vem a sentir todo o drama desse momento de vida social agitada, no entanto, a seu modo histericamente histérico
Do poema:
Desde os primeiros versos, podemos observar traços do Álvaro de Campos já mencionados, tal como angústia e a desilusão para com a realidade.
“Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter”
(ÁLVARO DE CAMPOS 1.1-6)
Há nesses versos uma necessidade do eu-lírico de enganar-se quanto ao seu objetivo, pois embora esteja dirigindo pela estrada de Sintra, o mesmo não sente desejo de chegar lá e prefere acreditar que nunca deixou Lisboa, embora em nenhum momento o eu-lírico fale que gostava de Lisboa ou que se sentia bem lá, deixa claro apenas que não queria ir a Sintra.
O personagem demonstra uma inconformação tímida de ter que realizar o trajeto citado, tímida porque ele a realiza de qualquer forma, mesmo que o seu desejo fosse seguir por outra estrada, outro sonho, outro mundo. Ou seja, personagem, sente uma infelicidade geral quanto ao mundo. Nos versos seguintes, segue-se essa lamentação por ter que passar a noite em Sintra e não em Lisboa. Em determinado momento, o eu-lírico chega a reconhecer a falta de lógica em tais lamentações, pois não vê nexo em tanta angústia, aliás, angústia constante, pois ele mesmo reconhece que essa sempre está em seu peito, na estrada de Sintra ou na estrada da vida, muito provavelmente em Lisboa também. Ou seja, o eu-lírico, condutor do Chevrolet, não consegue se sentir bem em lugar nenhum, tendo em vista que a angústia vai em seu peito, e indo para Sintra, ele se lamenta por essa aflição que o atormenta.
A modernidade e a decadência do homem
Ao avistar um casebre à esquerda enquanto dirige, o condutor sente que o Chevrolet não lhe dá mais liberdade como outrora prometera, ao contrário disso, o prende. O Chevrolet, nesse contexto, representa muito bem a modernidade que inicialmente parecia encantadora e, no entanto, aos olhos de Álvaro de mim, trouxe decadência e uma certa forma de prisão.
“Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.”
(ÁLVARO DE CAMPOS 3.5-6)
Evidenciamos, portanto, a redução do homem à máquina e à falta de sua independência, visto que, agora a máquina já estava incluída no homem e o funcionamento da modernidade (dominação da máquina) só poderia ocorrer com essa dependência que exclui a autonomia do homem.
Em Álvaro de Campos, o tema da modernidade e a decadência humana que essa trouxe é muito comum, Ode Marítima, obra na qual o tema dos avanços também é tratado, nos traz um verso que diz “Eu pr’aqui engenheiro, prático à força, sensível a tudo”, tendo em vista a profissão do autor, podemos compreender que Álvaro de Campos quis trazer sua sensibilidade em relação à realidade e as angústias que essa traz, especialmente nessa perspectiva maquinária que reduz o homem às suas funções junto à máquinas da modernidade. O mesmo sentimento pode ser observado no primeiro verso da segunda estrofe de Ao volante de um Chevrolet pela estrada de Sintra: “Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio?”. A modernidade gera sempre dúvidas existenciais ao condutor, que não sabe mais se nessa atividade ele é o agente ativo ou passivo, se é ele quem guia o automóvel ou o automóvel é o centro e ele apenas quem o conduz, um coadjuvante.
Ao avistar um casebre muito humilde à esquerda da estrada de Sintra, o condutor imagina que lá, ao contrário do Chevrolet, habitam vidas felizes, mas logo depois reconhece que só tem essa visão por não viver lá, pois o mesmo pode parecer feliz do
ponto de vista de alguém que habite ao casebre. Assim, o condutor vê a felicidade apenas como uma idealização que só se realiza ao outro, mas imagina que, assim como ele, os moradores daquele casebre também tenham alguma angústia.
Ao longo de todo o poema, a lua acompanha o condutor, assim como a melancolia e a imersão nos próprios pensamentos, a lua e a escuridão da noite reforçam essa imagem de solidão e até mesmo de tristeza. Por fim, na estrada de Sintra, o condutor revela se sentir cada vez mais longe de si mesmo. Em todo o poema, podem ser vistos traços tanto do simbolismo português, como da escrita peculiar de Álvaro de Campos, que como o próprio Pessoa escreveu:
Se eu fosse mulher – na mulher os phenomenos hystericos rompem em
ataques e cousas parecidas – cada poema de Álvaro de Campos (o mais
hystericamente hystérico de mim) seria um alarme para a vizinhança […].
(Carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro sobre a génese dos heterónimos)
A respeito da relação da obra com o simbolismo português, é inegável a influência do segundo na primeira, considerando o caráter do simbolismo português e suas principais características, teremos a retomada do “eu” como objeto de exclusiva atenção – na obra observamos esse aspecto em todo seu corpo, visto que o foco de todo o texto são as amarguras e os sentimentos do condutor – expressão de um conteúdo do espírito através de vivências cotidianas, versos livres e especialmente, a sondagem interior em planos fundos, pois é possível ver e sentir o condutor mostrando a fundo seus sentimentos, sua confusão quanto à razão de suas aflições e seus pensamentos, além do desconforto com a realidade da época, principal motivação do poema.
REFERÊNCIAS:
PESSOA, Fernando, Citações e pensamentos de Fernando Pessoa, org. de Paulo Neves da Silva, Alfragide, Casa das Letras, 2.ª Ed., 2009.
CAMPOS, Álvaro de, Poesias de Álvaro de Campos, Lisboa, Edições Ática, col. «Poesia», 1993.
GOTTLOB, M. G. Álvaro de Campos, Poeta Sensacionista. ALFA: Revista de Linguística, São Paulo, v. 16, 2001. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/article/view/3413. Acesso em: 20 jun. 2022.
PESSOA, Fernando. Obra completa III; poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática, 1958.
Me chamo Andrélia Vasconcelos de Sousa, tenho 22 anos, sou graduanda do curso de Letras ernáculas da Universidade Federal do Ceará (UFC), no último semestre. Nascida e criada no Ceará, eu sou apaixonada por literatura, pintura e toda forma de arte. Sou professora e acredito na educação como uma poderosa ferramenta de mudanças.
@_andrelia