A CIDADE É DE TODOS
Começo esse texto como Williams (1) inicia “A cultura é de todos”: O ponto de ônibus era em frente à catedral. Um ponto com ônibus e horários reduzidos, que criam uma circulação limitada aos cerca de 30 mil habitantes da pequena cidade localizada “ao pé” da serra gaúcha, denominada Dois Irmãos. Com isso, o fluxo de entrada e saída da localidade, batizada em homenagem aos morros gêmeos que a demarcam, é restrito. Onde o fluxo de ideias trocadas em outros territórios, aprendidas em outros contextos, em outras culturas, encontra raros horários nos quais consiga embarcar para então descer em frente à catedral.
Figura 1 - Sticker em parada de ônibus em frente à Paróquia São Miguel e nos fundos da Antiga Igreja Matriz.
Fonte: Registro realizado pela autora em outubro de 2022 em Dois Irmãos/RS.
Mas existem também outras brechas. Os meios de comunicação de “massa” não dependem de políticas públicas de transporte. E o urbano se infiltra no interior por meio da televisão, dos filmes, revistas, músicas e da internet. Se infiltra por meio da economia, no comércio, na arquitetura com a construção de prédios que retiram as características horizontais das construções, nas indústrias calçadistas. Se infiltra na visualidade, nas caixinhas de luz e nas lixeiras no seu formato mais ligeiro: o sticker. Se imprime nos murais, onde o graffiti assina uma presença com o tag (2) e o lettering, registrando marcas e buscando legitimação no próprio grupo e na sociedade. Ainda que Coluccio (3) afirme que é no interior que a tradição e a identidade cultural é respeitada, e conservada como versão autêntica de uma sociedade, como apresenta Canclini (4), a modernidade e suas consequentes modernizações pegam carona até os espaços mais tradicionalistas, demarcando uma transformação cultural.
Figura 2 - Stickers em caixa de luz próximo à Paróquia São Miguel.
Fonte: Registro realizado pela autora em outubro de 2022 em Dois Irmãos/RS.
Figura 3 - Stickers em caixa de luz próximo à Antiga Igreja Matriz.
Fonte: Registro realizado pela autora em outubro de 2022 em Dois Irmãos/RS.
Tateando as ruas e rotas desconhecidas, a subversão é desorientada. Espreita nas placas de sinalização das esquinas uma direção possível. Busca indicar a saída ou, como diria Williams, desobstruir os canais para permitir novos tipos de ofertas. A arte urbana, assim conceituada por Pallamin (5), atua enquanto prática crítica na apresentação de conflitos sociais e, também, na construção de alterações sociais. No contexto do interior, é um sinal de violação do olhar atento da população e das câmeras de segurança dos pequenos-burgueses, que vigiam seu patrimônio - cultural e material - alicerçado no pensamento e nos interesses privados. Na transgressão desse pensamento, atua o graffiti, que, como aponta Silva (6), é uma intervenção efêmera, um modo de assumir novas relações entre o público e o privado, entre o que é cotidiano e o que é político.
Figura 4 - Stickers em placa de sinalização do bairro Vale Verde.
Fonte: Registro realizado pela autora em outubro de 2022 em Dois Irmãos/RS.
Simbolizando essa relação, encontram-se os graffitis do muro que cerca a Sociedade Cultural Beneficente União. A iniciativa não é do poder público, tampouco do clube, mas de um morador. Em comemoração ao seu aniversário, com a autorização dos proprietários, Grito, codinome utilizado para manter o anonimato, convidou os amigos para colorir os muros brancos. Nessa ação, que, conforme conta o grafiteiro, “busca dar vida a espaços apagados”, o grupo da pequena cidade passou uma mensagem por meio dos desenhos e também através da presença. “Aqui também existe arte”, afirma. “E a arte liberta”, complementa. Grito, que iniciou com intervenções com spray na mesma cidade em 2005, conta que se trata de um hobbie, um vício, complementado que “tem uns que gostam de ir em bar, tomar umas biras, outros fumar, alguns vão pro futebol; um dos meus vícios, que eu tenho, para me aliviar, é o graffiti”.
Apesar dos olhares desconfiados, a tinta colorida permanece nesse muro e em outros locais da cidade, demarcando uma alteração social e cultural sobre a presença de signos e símbolos que, pelo juízo moral e de bom gosto do senso comum, não pertencem à cidade dos morros gêmeos. Essas transformações, que acontecem progressivamente, vão demarcando novos hábitos e costumes.
Figura 5 - Graffiti no Muro da Sociedade Cultural Beneficente União.
Fonte: Registro realizado pela autora em outubro de 2022 em Dois Irmãos/RS.
Contestações diretas ao governo (historicamente de direita e pautado princialmente em interesses do empresariado) sobre, por exemplo, a insuficiência de investimentos em transporte público, não fazem parte da cultura de intervenções praticada nessa pequena cidade. Diferente do que acontece nos centros urbanos, nela, o graffiti, por meio das assinaturas, também não é inserido em prédios, numa batalha cultural por presença e/ou no alargamento de questionamento sobre a segurança dessas propriedades. Mas, ainda assim, existem. Grito afirma que a produção de graffiti está em crescimento, comparado ao número de habitantes e considerando o tamanho da cidade. “Com uma mente pensante, temos bastante a evoluir ainda, queremos ganhar mais espaço. Fazer projetos e ter espaços liberados e apoiados financeiramente pela prefeitura, pois nosso corre está sendo independente até então…”, afirma.
Figura 6 - Pixos e stickers no bairro Primavera.
Fonte: Registro realizado pela autora em outubro de 2022 em Dois Irmãos/RS.
Figura 7 - Pixos no bairro Centro.
Fonte: Registro realizado pela autora em outubro de 2022 em Dois Irmãos/RS.
Essas atitudes rompem com o imaginário construído acerca de uma cidade do interior. Essa especialmente. As imagens produzidas, que se relacionam com limpeza e organização, são interiorizadas no imaginário da população que nela reside e que a visita. E rever, ou transgredir, essas regras estabelecidas no inconsciente coletivo, transforma também o imaginário dessa cidade como construção social da realidade (7). Citado por Oskar Negt (8), Václav Havel, ex-presidente da República Checa, afirmou, em um evento, que para perceber a satisfação das pessoas com relação à política, basta ver as fachadas e o conjunto arquitetônico. A ideia que o governante compartilhou na ocasião se fundamentava na relação simplista de que se as fachadas estão bonitas, a população sente afeto pela comunidade, interesse por essa imagem, esse imaginário.
Figura 8 - Pixos no bairro Centro.
Fonte: Registro realizado pela autora em outubro de 2022 em Dois Irmãos/RS.
O que não é comentado por Václav Havel é o fato de que contrariar essas normas do imaginário, mas também as legislativas, por meio de intervenções urbanas, simboliza, como afirmam Campos e Câmara (9), uma manifestação de um direito de uso da cidade. É a criação de um novo fluxo baseado no pensamento público: no direito de pertencer a essa cidade e de assinalar outras presenças. Pallamin apresenta que, ao ocupar os muros, postes e placas, questiona-se sobre como e por quem os espaços da cidade são determinados, ou seja, quem exerce o direito à participação cultural e social nesse espaço.
Grito compartilha que, durante os quinze anos nos quais pratica o graffiti, recebeu diversas abordagens policiais, que lhe renderam antecedentes criminais por vandalismo, nos termos do artigo 65 da Lei 9.605/98 (Lei dos Crimes Ambientais), que estipula pena de detenção e multa para quem pichar, grafitar ou por qualquer meio conspurcar edificação ou monumento urbano. Sob o olhar que vigia nesse pequeno território, os jovens grafiteiros sofrem com a repressão: “A cidade reprime bastante aqueles que estão começando com a arte, aí a molecada toma uma ruim nos primeiros trampos que vão fazendo no vandal e param”, conta Grito. Nessa insistência em se fazer presente e no amor pela cultura do graffiti, o artista movimenta os amigos e grafiteiros para confraternizações em Dois Irmãos e na região. São eles suas referências, pessoas que acompanha no dia-a-dia e que seguem “firmes no propósito apesar da rotina da vida (normal)”, conta. Suas primeiras inspirações, vindas das ruas e das revistas, foram trampos realizados por Dano, Riskos, Aon, Olhos, Noias, True, Binho, Boleta e muitos outros. Conforme aponta, as cidades maiores são mais tranquilas para pintar graffitis não autorizados, pois a população já está mais acostumada com essa cultura. Assim, a quantidade dessas intervenções é maior, proporcional ao número de grafiteiros que percorrem ou habitam aquele território. Mas, conforme ressalta Grito, essa não é a regra: “Já passei por muitas cidades maiores que Dois Irmãos e não existe graffiti ainda…”.
Williams finaliza seu texto questionando quem ainda acredita na democracia. Conclui refletindo sobre as maneiras de prover a liberdade e proteção da dominação de uma minoria financeira e política. Ao questionar quem acredita na democracia, conclui: milhões de pessoas (no contexto inglês na década de 50), que ainda não têm acesso a ela. Aqui, nessa cidade, ao questionar o território social, as intervenções com graffiti buscam romper com os usos e imaginário hegemônicos. Na realidade brasileira dos anos em que vivemos, essas formas de ação urbana tensionam usos do espaço, questionam ações governamentais e governantes, manifestam e reivindicam visando a construir uma sociedade mais democrática.
Notas de rodapé
1 Raymond Williams, sociólogo e teórico da comunicação e da cultura, referenciado nesse texto pela publicação “Culture is ordinary” de 1958, traduzida por Maria Elisa Cevasco.
2 Tags são assinaturas de origem no grafite norte-americano.
3 Folclorista Félix Coluccio, citado em “Culturas Híbridas” pelo texto “El Alma del País Está en el Interior: Conversación con Félix Coluccio” de 1987 de Carlos Ilanvosky.
4 CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade. Tradução Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2019.
5 PALLAMIN, Vera M. Arte urbana como prática crítica. In: Cidade e cultura: esfera pública e transformação urbana. (org.) PALLAMIN M, Vera; (coord.) LUDEMANN, Marina. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.
6 SILVA, Armando. Atmosferas urbanas: grafite, arte pública, nichos estéticos. Tradução de Sandra Trabucco Valenzuela. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2014.
7 SILVA, Armando. Imaginários: estranhamentos urbanos. Tradução de Carmen Ferrer. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2014.
8 NEGT, Oskar. Espaço público e experiência. In: Cidade e cultura: esfera pública e transformação urbana. (org.) PALLAMIN M, Vera; (coord.) LUDEMANN, Marina. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.
9 CAMPOS, Ricardo; C MARA, Sílvia. Arte(s) Urbana(s). V.N. Famalicão: Húmus, 2020.
Rossana Pires está mestranda em Estudos Culturais (PPEC/USP), com pesquisa desenvolvida sobre lambe-lambes produzidos por mulheres em Porto Alegre/RS. Especialista em Práticas Curatoriais (PPGAV/UFRGS), tem interesse por áreas como curadoria ativista, intervenção urbana, artes feministas e democratização da cultura.
@insanapires