alguém avisou
alguém sempre avisa.
ela correu sem tocar o chão
e congelou na primeira esquina
sentiu as agulhas na testa e o coice no peito
fechou os ombros e curvou a dúvida
para enxergar direito.
era ele.
pequeno
nu
do avesso
crivado
cabelos cobertos pela velha auréola escarlate.
ela entendeu
e urrou
engasgou
buscou ar
recusou todas as mãos
e despencou no próprio destino.
como assim, ela não podia tocar?
a retina expulsou a fúria nas palavras que tentava juntar:
que vergonha da nossa cidade!
que vergonha do nosso país!
que vergonha de Deus!
até o vento baixou a cabeça.
a silhueta miúda desceu do navio
e bateu na porta branca
do outro lado do oceano.
tinha oito anos e cinco séculos.
queria um pedaço de pão
não sabia que teria que pagar com o futuro.
pensou que tinha chave, mas só abria por fora
pensou que tinha quarto, mas só cabia medo
pensou que tinha lugar à mesa, mas era só o que sobrava
pensou que comeria carne, mas não a sua.
pensou que era gente, mas foi emprestada
pensou que sabia abraçar, mas era rotina
pensou que não tinha cor, mas descobriu a cicatriz
pensou que era da família, mas era “como se fosse”.
pediu socorro num bilhete
não queria liberdade, porque nem conhecia
só precisava de sabonete.
quem leu entendeu:
era a menina do navio, que sumiu naquela porta
e ninguém procurou.
Grazielle Mendes é jornalista e mestre em Ciências Sociais pela PUC Minas. É natural de Belo Horizonte (MG), onde mora. Autora do livro Notícias da velha nascida (Edição da autora, 2022), também publicou poemas nas antologias "Escrita de Si"; e "Rotas de Fuga" (Edições e Publicações, 2021) e "Artistas contra a Barbárie" (Escola Cidadã, 2023), além das revistas Marítimas e La Loba.
@grazimendessoares