Rastros de estrela cadente
Imersa sob a água fria de um oceano qualquer, a femme-poisson glubeglubeglubea. Borbulhas ritmadas emolduram um líquido e sereno retrato. Por vezes ergue a cabeça para tomar fôlego, pois em breve um novo ciclo será iniciado. Micro-ovas serão depositadas em sua boca, como havia sido feito através do tempo sem que se possa definir ou precisar a primeira desova, nem atribuir um número certo para o momento. A natureza lhe preparara para aquela circunstância que se cumpria, sem crises de identidade, sem contestação, questionamentos, apenas se cumpria. Percebia certos olhares sem que conseguisse decifrar. Já havia sido advertida que o olhar pode dizer tudo sobre o ser em questão. Nunca desviar do olho-no-olho e do poder que ali pode estar. Muitos olhares em volta é a glória, foi o que lhe ensinaram.
Refestelava-se, como uma boa femme-poisson, manifestando a alegria por ter sido escolhida para importante e imprescindível tarefa. Outras manas e manos haviam passado por isso, ouvira contar. Sabia que por algum tempo teria de fechar a boca, nada de glubeglubear. A felicidade da continuidade iminente tomara conta dela e glubirou, glubesceu construindo rastros de estrela cadente. Saltitava. Percebia que não estava sozinha na incumbência em meio à escuridão das profundezas do mar. Os diversos glubeares borbulhavam em fina pauta musical.
Tanto enlevo focado no que estava para acontecer que, por fração de segundos, esqueceu das agruras da sobrevivência, deixando-se flanar na água. Estava entre os seus, sentia-se protegida. Imaginava o quase imediato futuro de glubeglubes a espalhar por esse marzão sem início ou fim. Tudo corria na linha da garantia da espécie, assim lhe conduziam por glubes-serenos.
Um certo glubearzão acendeu a angústia por se encontrar sozinha em meio a reviravolta desordenada de seus pares. Para isso não estava preparada. Procurou em seus aprendizados com a pressa de quem passa por uma raia ensandecida e nenhum batia com o inusitado do momento. Para ela não havia um eu, mas o nós. Assim lhe disseram e assim crescera. A bocarra escancarada desnorteava ainda mais a femme-poisson que em protesto desesperado gritou um GLUUUBEEEEAAAAARRRR rasgado como tentativa de intimidar o GLUUUBEEEEROZZZZZZ ou trazer os seus para perto e afastar o que a aterrorizava e nem sabia nomear porque nunca tratara daquilo. Tentou o olho-no-olho em meio aos glubes-congelados-pelo-que-não-sabia. Um olho cego, sem brilho feriu-lhe sem que dele pudesse defender-se. Ele avança na velocidade da fome que sentia e lhe abocanha a vida e sua transcendência sem nem titubear. Nenhum glube foi ouvido. Apenas o grande movimento sob a água resultou na pequena onda que fez alguém que admirava o mar, sorrir.
Cátia Castilho Simon é doutora em estudos da literatura brasileira, portuguesa e luso-africanas/UFRGS. Recebeu o prêmio Vianna Moog, em 2014, UBE/RJ, por Labirintos da Realidade – diálogo de Clarice Lispector com Machado de Assis. Publicou contos, ensaios e poesias em coletâneas e periódicos. Publicação recente: Rastros de Estrela (contos), POA: TDA, 2022. É coorg. e coapresentadora do Digressões Clariceanas, desde 2021. Integra o Mulherio das Letras/RS, é vice-presidente cultural da AGES, gestão 2023/2024.
@catiasimon