Em outro tempo, em outro lugar
Entro no terreno em silêncio. As folhas secas estalam sob os meus pés e o vento quente espalha com pressa os pequenos vestígios do meu caminhar. Conforme avanço, contemplo o solo árido ao meu redor, pálido e tortuoso, com suas cicatrizes expostas feito um quebra-cabeça sem fim. O sol forte eterniza a sua presença por todos os lados. Apenas lagartos e formigas desbravam a vida no local onde jaz o meu coração.
Um arrepio percorre o meu corpo assim que vejo a solitária casa amarela no limite da propriedade. Respiro fundo e sigo até a porta de entrada. A madeira apodrecida da varanda toca, tábua a tábua, uma desafinada sinfonia de rangidos. De olhos fechados, estico o braço direito e, com a ponta dos dedos, giro devagar a maçaneta enferrujada. Uma nota aguda ecoa na abertura e faz despertar o interior da residência de número 12.
As paredes da sala, embora trajadas de mofo e infiltrações, colorem-se de memórias jamais apagadas pelo tempo. Prova disso são os rabiscos de giz de cera que resistem no rodapé atrás do sofá feito arte rupestre. Abro as janelas levemente emperradas e a luz natural banha o ambiente após um longo hiato. A claridade logo convida uma constelação de poeira para um baile cósmico conduzido pelo revigorante fluxo de ar.
Teias de aranha protegem a vitrola na estante. Noto que um álbum de Caetano Veloso permanece em sua bandeja e, ainda que adormecido, alimenta a fome por canções. Peço licença aos aracnídeos, expulso a sujeira do aparelho e permito que a agulha beije gentilmente o vinil. Em segundos, a trilha impressa nas ranhuras do disco guia as ondas sonoras pelo alto-falante e a faixa “Oração ao tempo” preenche a casa de pura magia.
A canção atinge os meus tímpanos como um raio ancestral e conecta o meu corpo com uma familiar imersão de dopamina. As vibrações me envolvem em um abraço aconchegante e, em cada verso, sinto você. Uma lágrima fugitiva se atreve a trazer o sal de volta à minha pele. Há um poder magnético na pronúncia das palavras de “Caê”. Ouso acompanhar sua voz sagrada com o cuidado de quem faz uma oração, uma invocação.
Liberto-me ao ritmo, ao choro e ao riso. Arrasto os móveis pelo cômodo e permito que os movimentos fluam como se não existisse amanhã – sem mais dúvidas, sem mais medos. Coreografo uma dança movida à energia para além da sala. Desbravo a copa, com suas cadeiras empilhadas sobre a mesa de jantar, e deixo a mente balançar entre o lustre quebrado no teto e as lembranças de reuniões regadas a vinho.
A ausente porta da cozinha, outrora arrancada por diversão, afinal receitas semeiam o amor e não merecem barreiras, acende a imaginação e o apetite. Salivo ao recordar o aroma de bolo de chocolate recém-saído do forno e o doce sabor das tardes de domingo. Encaro o balcão de mármore da pia, frio e resistente aos infortúnios, partido como um experiente coração. Cupins devoram as entranhas dos armários, esqueletos ocos à mostra.
Este velho mundo é um novo mundo para mim. Fito a escada, timidamente iluminada por uma opaca claraboia, contorcida tal qual uma coluna cansada. Subo com cautela por seus degraus cinzentos e inquietos, escorregadios pelo carpete puído, com a mão agarrada ao corrimão farpado. As suaves ondulações pelo caminho cospem pregos firmes como as obsoletas pegadas que tanto acolheu. Alcançar o topo é abrir um portal dimensional.
Conto oito passos no corredor, desvio de um obstáculo, ignoro dois cômodos à direita e paro. Uma porta vermelha, desgastada e meio fora das dobradiças, sinaliza a chegada ao palco dos meus sonhos. Empurro-a com delicadeza e constato que o quarto se mantém sereno, como se tivesse escolhido a solidão à companhia. As janelas, ainda que com os vidros fechados, emolduram a arte mutável do céu, com sua beleza transitória e constante.
Retiro os lençóis que cobrem os móveis em um cortejo de espirros. Existem doses de bagunça mescladas a uma certa organização, um velho atestado de criatividade e interesse pelo espaço. Sento na beirada da cama, refúgio da noite das almas, e afundo em déjà-vu. Meus pensamentos desaceleram como um magnífico carrossel, as pálpebras pesam sobre os olhos e batidas etéreas ecoam por perto.
Em instinto, levanto da cama e a afasto. Procuro a estratégica ripa solta no assoalho de madeira, o meu esconderijo do passado. Estendo a mão sobre a superfície cor de canela, minhas impressões digitais tocando os redemoinhos de sujeira. Desencaixo a ripa e, para a minha paz, encontro o que tanto almejo. Envolto em um plástico grosso, o livro de capa dura azul, com letras douradas na lombada, guarda uma promessa.
Despeço-me do quarto, de Caetano e retorno ao ar livre. O canto fantasmagórico de um urutau me atraí para a lateral esquerda da varanda, onde duas cadeiras de balanço repousam lado a lado feito sentinelas do lar. No braço de uma delas, a ave notívaga, camuflada por sua plumagem, rende-se ao dia e à curiosidade. Ando devagar até a outra cadeira e sinto o olhar misterioso do pássaro sobre o pacote em minhas mãos.
Retiro o plástico que envolve o livro para que as páginas respirem. A obra “A Máquina do Tempo”, do autor britânico H. G. Wells, já dormiu demais e logo tenho que ir embora. Busco imediatamente na contracapa a dedicatória tão poderosa quanto o destino. Cada palavra escrita ali canaliza o grande conhecimento que me assombra e também ampara. Encaro a casa pela última vez e crio coragem para ler em voz alta. O urutau abre os olhos.
— A sua vida é o seu tempo. O seu tempo é a sua história. A sua história é a sua partida. A sua partida será agora. Agora não há mais templo. O templo pôs fim às memórias. Tudo será novo de novo. Vem me encontrar. Vem me reconhecer. Não desiste de nós. Estou lhe esperando do lado de lá. Em outro tempo, em outro lugar.
Fecho o livro e aguardo. Não há luzes giratórias ou túneis, apenas uma dor crescente. É a trigésima vez que embarco a outro mundo, a outro período, e, ainda assim, não consigo me acostumar. Sinto cada osso do corpo ser pulverizado, cada tecido ser dilacerado, cada lembrança ser descosturada da mente por afiadas agulhas. O amor é uma viagem sem volta. É tentativa e erro. É amnésia consciente. É o canto de um urutau a me encarar agora.
Emily Antonetti. Jornalista (UFMT) por formação, contadora de histórias por natureza. Em 2023, teve contos e microcontos publicados por editoras (Baruch, Cartola e 3 Serpentes), concurso literário (3º FELIV) e revista (Ecos da Palavra-PT). Finalista dos prêmios Off Flip de Literatura (crônica) e Cartola de Literatura (conto) e terceiro lugar na categoria crônica (+30) do Projeto Viajando na Leitura (IHGP e APL).
@emyantonetti