Amável festa com a Pantera
Gritos infantis sobre a lona vermelha e pulsante do túnel inflável, ressoando pelo ambiente do grande salão iluminado e decorado por balões e estátuas emborrachadas (daquelas criaturas infantis frequentemente retratadas na televisão), diminutos vultos correndo alegres pelo piso e subtraindo vez ou outra brigadeiros de cestas sobre as mesas principais, um vozerio constante formulado por exclamações infantis e das mesas mais aos cantos com os irmãos e irmãs mais velhas das crianças conversando, com os pais e os amigos dos pais conversando, bebendo refrigerante (ou suco ou cerveja) e comendo salgadinhos e (bolos) salgados. Dentre eles Cristine Galaida, contente mãe de duas crianças, uma delas já aos vinte e dois e a outra a própria aniversariante daquela festa, e tinha em sua mesa o marido que conversava com o amigo que era também pai de uma amiga da filha menor. Era a Gabi quem fazia seus sete anos em meio a tantas decorações alocadas especificamente de acordo com seus gostos — os animais, as criaturas digitais, os balões e os brinquedos —, e estavam todos felizes com o resultado.
Cristine Galaida, mulher dispersa e sossegada, havia deixado seu celular repousando ao lado do copo de cerveja puro malte que tomava (sobre alguns farelos de quibes dispersos), e o tal celular, mesmo no modo silencioso, continha em sua tela um indicativo de que recebia uma chamada. Cristine Galaida atentava-se à história que o amigo do marido contava (sobre um tal ajudante circense que efetuara alguns roubos na cidade), e por isso demorou de vinte a trinta segundos para notar o latente toque do celular. Quando o percebeu, enfim, desculpou-se com os comensais amigos para atender a outra filha. Fluidamente demoveu-se da mesa, observou a bem-aventurança da festa, e preparou-se para escutar a voz no celular.
— Mãe!
— Boa tarde, filha.
— É sério que você chamou ele pra festa?
— Do que você está falando?
— Você sabe muito bem. Eu tinha dito pra você não chamar ele, mesmo que a Gabi pedisse. Bem no meio da minha viagem!
— Exato. Não se preocupe, aproveite sua praia. Enquanto isso, sua irmã está muito feliz com a festa dela. Vejo ela agora, pulando naquele túnel de lona com as outras crianças.
— Ele tá no meio das crianças? Mãe.
— Não sei o que você está querendo dizer. Mas não, só as crianças estão se divertindo nos brinquedos.
— Você sabe o quão impróprio é chamar ele pra festa depois de tudo que aconteceu?
— Foi sua irmã quem o convidou. E tudo casou muito bem porque nós, eu e seu pai, estávamos com dificuldade para conseguir alguém que pudesse ser divertido e confiável para fazer as piadas mais ao final da festa.
— Mãe, você chamou ele pra fazer o que aí? Pra ser palhaço?
— Ele concordou e achou muito legal, e ficou feliz porque a Gabi queria muito. Já tinha até o contato certo para pegar a fantasia.
— Não, ele não devia estar no meio de tanta gente. Você se lembra do jantar no restaurante japonês. A vergonha que eu passei. Você sabe muito bem o espetáculo que se deu.
— Pois você se surpreenderia com sua paciência e atenção. Aquilo tudo ele parece ter deixado para trás. Está mais comedido do que nunca, até ajudou a montar grande parte da decoração da festa. Nenhum comportamento inadequado.
— Meu Deus. Eu só estou dizendo que acho isso impróprio. Ele já não tava bem há algum tempo. Mesmo depois do tratamento, mesmo assim ele não deu mostras de melhorar. O médico já havia dito, ele devia ter ficado mais tempo, todos nós sabíamos, mas não. Você se recorda disso. Já nos almoços de domingo, as coisas que ele falava, a brincadeira que ele fez com a vovó… E, além de tudo, o jeito que ele reagiu depois de eu ter… entende? Não é pra mantermos mais contato com ele. Acabou. Eu tinha sido muito direta quanto a isso.
— Foi uma coisa que a Gabi pediu muito, a pobrezinha. Ela sempre gostou muito dele. Vai ser a última vez, e depois disso vamos virar essa página. Ela está tão feliz.
— Eu disse o que eu disse. Qualquer coisa estranha, não vá me falar que eu não avisei.
— Tome cuidado aí. Não saia andando sozinha por essas cidades do litoral depois de escurecer.
— Não precisa me dizer isso, mãe.
— E traga alguma lembrancinha para Gabi. Você sabe o quanto ela está chateada com o fato da própria irmã não comparecer à sua festa de aniversário. Ela está realmente triste.
— A gente já falou sobre isso, mãe. Minha viagem já tava programada há meses, já havia sido paga. Eu sempre faço a mesma viagem na mesma data e nunca tem problema. Não tenho culpa dos atrasos que você e o papai tiveram alugando o salão. A minha viagem nunca coincide com a festa da Gabi.
— Traga uma lembrancinha para ela. E tome cuidado.
— Tá bem, mãe. Mas tenta ficar de olho nele, pelo amor de Deus. Eu não sei como ele tem andado.
— Pode ficar tranquila. Aqui todo mundo está muito bem e contente.
— Eu sei, mãe, mas não descuide muito das coisas, entendeu? Tá bem, eu vou desligar. Toma cuidado e fica de olho, viu?
— Claro, filha. Tchau.
— Tchau.
No interior do grande túnel de lona inflável jaziam as crianças em sua rota unidirecional cujo único objetivo era vencer o trajeto de obstáculos no menor tempo possível. Como um segredo, porém, havia uma câmara mais à metade do túnel que não fazia parte integral da pista de obstáculos, e nessa câmara duas crianças permaneciam qual numa reunião de clubinho, sentadas sobre as laterais emborrachadas e julgando os outros que realizavam o percurso.
— Olha como eles são lentos — disse Maria. — Eu consigo terminar mais rápido que eles mesmo com o joelho ralado.
— Eu também — disse Gabi. — Só não vou tentar agora porque sou a aniversariante e não preciso me esforçar.
Um menino parou no meio do trajeto e ficou olhando elas na câmara interna, como se houvesse descoberto um salão oculto dentro do túnel.
— Você não pode entrar — disse Maria. — Aqui só a aniversariante e sua melhor amiga são bem-vindas.
O menino baixou a cabeça e continuou seguindo pelos obstáculos.
— Que idiota — disse Maria. — Querendo entrar no lugar secreto.
— Você quer saber um segredo mais secreto ainda? — disse Gabi.
— Quero.
— Vai ficar querendo.
— Só não te xingo porque é seu aniversário.
— Obrigada. Eu posso te dar uma dica, você quer?
Desconfiada, Maria analisou Gabi. As crianças continuavam pulando e correndo pelo trajeto do túnel, e mal percebiam-nas ali. Ao fundo, ruído onipresente de grande comemoração.
— Quero.
— Ok. Uma frase: hora de flutuar! — E Gabi bateu palmas e sorriu.
— Não entendi.
Gabi fechou os olhos e segurou a respiração por uns instantes.
— Só mais uma então: balões vermelhos! — E se encolheu toda.
— Ainda não entendi.
— Então vai ter que esperar até um pouco antes do parabéns.
Maria cruzou os braços e deixou recair o olhar na barulheira das outras crianças. Sua melhor amiga conservava um risinho esperto no rosto, feliz por saber algo que a outra não sabia. Muito rápido, um menino que tentava ultrapassar os obstáculos tropeçou num cilindro de lona e deu de cara com o piso, num estrondo abafado. As duas riram muito e zombaram dele.
— Vou pegar uns beijinhos — disse Gabi. — Você quer?
— Quero.
Ela foi se deslocando pelo túnel, mas sem pressa. Ao descer o pequeno escorrega em seu final, emergiu novamente na festa de aniversário: mesas e cadeiras lotadas de gente (a maioria das pessoas ela não conhecia) e conversas e risadas ecoando pelo enorme salão. Os balões vermelhos imperavam pelas paredes, e um fulgor alaranjado do crepúsculo perseverava atrás das clarabóias, radiando a intenção da tarde. Achou tudo muito colorido e agradável. Foi até a mesa com várias guloseimas. Viu, na distância, sua mãe e seu pai rindo com os outros adultos daquelas coisas sem sentido que eles falavam. Antes de pegar os docinhos, comeu uma esfirra de carne e uma coxinha. Estava bom, então pegou mais uma esfirra. Depois, quando foi pegar dois beijinhos pelo papel, sentiu a própria mão um pouco engordurada, o que a fez se lembrar do aviso primário de que não podia sujar os brinquedos infláveis, senão ficaria de castigo e nunca mais teria uma festa de aniversário com tantos brinquedos. Foi desfilando pela festa até a área dos banheiros. Havia dois deles, um para homens e outro para mulheres, e havia ainda uma porta ao lado do banheiro dos homens que levava às áreas internas do salão. Mas não precisava entrar em nenhuma dessas portas, pois do lado de fora encontrou uma torneira para lavar as mãos. Estava secando-as com o papel quando notou um homem a chamando da porta que ia pelo corredor. Era ele. Foi indo após sentir as mãos bem limpas e deu uma delas ao homem, e foram andando pelo corredor inexplorado, que era muito silencioso porque o vozerio da festa não chegava até ali.
— Que lugar é esse? — disse Gabi.
— É a área do salão reservada aos funcionários — disse ele.
— A gente pode entrar aqui?
— Sim, porque seus pais alugaram o salão inteiro.
— A esfirra tava boa, experimentou?
— Eu comi sim. Estava realmente boa. Mas gosto mais dos doces.
— Eu também. Gosto de beijinhos e de bolo de morango. Mas de vez em quando gosto muito de esfirras. Sabia que a Maria ralou o joelho no túnel? Ela estava indo rápido demais e ralou o joelho na própria lona. Eu ri um pouco mas depois de ver que estava sangrando me senti mal.
— Coitadinha dela. Logo vai sarar.
Gabi olhou ele curtamente. Chegaram a um cômodo vazio onde várias caixas de papelão jaziam amontoadas pelos cantos. Dentre outras coisas que podiam ser vistas sobre prateleiras de metal, estavam embalagens de plástico com centenas de copos, enfeites avulsos, pacotes de balões, ferramentas de limpeza e muitos panos e toalhas. Havia duas geladeiras idênticas e, ao lado delas, uma porta fechada.
— Você quer beijinhos? — disse ele, e foi até uma das geladeiras e a abriu e lá dentro estavam bandejas com beijinhos e brigadeiros. Gabi pegou dois e ele pegou um. Graças ao silêncio, a festa parecia muito longe.
— O que tem nessa outra geladeira? — disse Gabi.
— É o bolo.
A menina ia abrir a geladeira, mas ele indicou para não fazer isso.
— Não pode pegar o bolo agora. É para a hora do parabéns.
— Eu não vou comer, apenas dar uma olhada.
— Gabi, a aniversariante só pode ver quando for cantar parabéns.
— Tá bom.
Ele sentou-se num banquinho de tábua de uma mesa próxima às geladeiras. Gabi se colocou ao seu lado. Sobre a mesa havia um número de objetos dispersos: um macacão amarelado, tecidos coloridos complementares, uma peruca esponjosa, dois pequenos potes de tinta alva, uma redonda prótese avermelhada.
— Você não tem medo de palhaços? — disse ele.
— Eu não. Eu já assisti a vários filmes de terror com palhaços. Já assisti a vários filmes de terror no geral. Acho que fiquei mais corajosa. O que tem naquela porta ali?
Ele sorriu.
— Gabi, assistir a vários filmes de terror não a faz corajosa de verdade. Isto porque filmes não são realidade. A gente jamais se acostuma com o horror sem antes precisar aderi-lo à nossa própria pele, mastigá-lo e tornar-se um com ele. Mas isso você não precisa aprender ainda. Agora, Gabi, você pode me ajudar um pouco?
Ela fez que sim com a cabeça e, de mãos dadas, eles foram até a porta que estava ao lado das geladeiras. Quando entraram no pequeno banheiro de funcionários, ele fechou a porta e afagou os cabelos dela, tirando a franja da frente dos olhos.
— Tome aqui — disse, entregando o potinho de tinta branca. — Pode passar no meu rosto com o dedo mesmo.
— Ahh — exclamou ela, maravilhada. — Como que tem que ficar no fim?
— Do jeito que você quiser, Gabi, pois é o seu aniversário.
Ela começou a aplicar a tinta no rosto dele, com muita atenção, e tinha nos olhos um foco que lhe era pouco usual.
— Sabe, Gabi, você está triste pela sua irmã não ter vindo à festa?
Ela pensou. Aplicava a tinta em grandes quantidades ao redor de suas bochechas, e seus movimentos eram desvairadamente precisos.
— Sim. Odeio ela.
Ficaram em silêncio enquanto ela fazia a sua arte. Ele respirou aliviado.
— Deixa eu te contar uma história, Gabi. Você conhece a história do Urso Marrom?
Sem cessar a aplicação de tinta, ela murmurou que não. Seus olhos infantis iam transitando pelo rosto cada vez mais esbranquiçado e ela tinha a feição pura e imersa.
— Pois bem, o Urso Marrom é um animal que tem duas casas, uma casa principal e uma outra no País das Neves. Melhor dizendo, o Urso Marrom vive no País das Neves de vez em quando, e vive na sua casa principal a maior parte do tempo. E é claro que o Urso Marrom tem pessoas queridas nos dois lugares onde mora: em sua casa principal, serena e esperada, ele gosta de apreciar as estrelas e os céus com sua família; já no País das Neves, onde o firmamento é muito mais negro e glacial, ele prefere passar a maior parte do tempo de frente à lareira com sua amiga, a Pantera.
— Também não conheço a Pantera.
— Muito bem, então vai passar a conhecê-la. Voltando à história, uma vez por ano, quando o Urso Marrom está em sua casa principal, ele tem um grande evento com sua família que é ver o eclipse solar. Todo ano eles assistem ao eclipse solar e ficam felizes. Você conhece o eclipse solar, certo?
— Uhum. Eu já vi uma vez. É muito interessante.
— O Urso Marrom e sua família também acham. Tanto é que eles passam a maior parte do ano na antecipação pelo eclipse. Acontece que, um dia, quando o Urso Marrom trabalhava arduamente em sua casa principal, ele soube por conhecidos que a Pantera havia ficado muito doente, muitíssimo doente porque sentia sua falta, porque precisava passar todas as noites geladas do País das Neves sozinha, pensando que nunca mais iria vê-lo. O Urso Marrom tinha planos, sim, de ir ao País das Neves, e apenas o trabalho o impedia. No entanto, a Pantera estava tão doente que parecia incapaz de aguentar a vida por mais tempo, e era cada vez mais óbvio que o Urso Marrom precisava visitá-la para ajudar na sua recuperação. Acontece que tudo isso se desenrolou justamente na época do eclipse solar, quando o Urso Marrom passaria bons instantes junto de sua família, vendo a lua cobrir o sol e o dia tornar a noite num instante mágico. Ao refletir e entender a gravidade da situação, o Urso Marrom percebeu que a vida da Pantera era mais importante do que o compromisso com a família. Então, resoluto, ele tomou a decisão de visitar o País das Neves no período de eclipse solar. Ao ver o Urso Marrom depois de tanto tempo, a Pantera foi capaz de se recuperar, tanta era a sua felicidade (e o Urso Marrom disse-lhe que sempre a veria, sem falta, todos os anos). O tempo passou e, após sua estadia no País das Neves, o Urso pôde voltar para sua família; inclusive, ele pôde ver, nos anos seguintes, tantos outros eclipses solares que todos ficaram felizes.
Ela continuava olhando-o em silêncio.
— Aonde eu quero chegar com isso, Gabi? — disse ele sorrindo, brincando com o tecido da gola de seu vestido. — Na vida real, a sua irmã é o Urso Marrom, e neste momento está visitando a Pantera no País das Neves. Como na história, a Pantera está muito doente, e por isso sua irmã teve de ajudá-la nessa recuperação, mesmo que significasse não conseguir assistir ao eclipse junto de você e sua família. Mas pode ter certeza que o Urso está muito triste por não conseguir vir ao seu aniversário.
— Você é um mentiroso — disse Gabi, e tirou a mão de sua cara risonha de tinta. — Eu sei que minha irmã foi à praia usar drogas com os amigos. — Aspas aéreas com dedinhos sujos. — Sei disso, ouvi o papai falando algumas noites atrás. E pelo que ele falou, não é um Urso, mas uma Vaca.
Ele continuou rindo simpático.
— Você tem razão, Gabi — disse, acarinhando as tranças que corriam por sobre suas orelhas. — Está ficando mais esperta.
— Acho que ficou bom. Posso botar o nariz?
Repetidas vezes, ele acenou sim com a cabeça.
O palhaço andava pelos corredores todo trajado. Enquanto o fazia, deslizava as mãos pelas paredes, e uma mancha esbranquiçada e viscosa restava sobre as superfícies. Ao chegar numa antessala de onde saíam os salgados e bolinhos e outras guloseimas, deu com uma mulher numa roupa de garçonete que organizava cada um dos salgadinhos numa bandeja de prata em um formato geométrico. Suas mãos acostumadas moviam os itens para seus devidos lugares numa rapidez admirável, e seus olhos esbanjavam toda essa concentração requerida pela tarefa manual. Quando percebeu o outro se aproximando, porém, deu-lhe uma vista rápida; mas logo retornou aos salgados. Em sua cabeça jazia um pequeno chapéu branco.
— O que é — disse o palhaço. — O que tá olhando? Quer algo comigo? Quer algo com minha cara?
A garçonete abaixou ainda mais a cabeça e continuou mexendo nos salgados sobre a bandeja.
— Não, senhor, estava só vendo se era a outra funcionária que chegava.
— Eu vi você olhando. Se quer me dizer algo, pode falar. Eu te dou toda atenção que quiser. Olha aqui, desgraçada.
A mulher encolheu-se e, mexendo nos salgados, permaneceu como se estivesse sozinha. O palhaço saiu esbravejando a passos pesados. Depois de cruzar o hall dos banheiros, imergiu no vozerio organicamente enérgico da festa de Gabriela Galaida. Dezenas e dezenas de crianças espraiadas junto aos brinquedos, os responsáveis bebendo e falando entre si e se cutucando vez ou outra e, resoluto, o palhaço abrindo espaço em meio a todos eles até o centro do salão. As pessoas já o percebiam, mas fez questão de chamá-los, e todos o obedeceram, amalgamando-se numa plateia elipsoidal ao redor de seu vulto de tez encerada e viscosa, em cujo centro da face restava um coração esfacelado. Em suas mãos, um amontoado de balões ardiam rubros. E já com todos a seu dispor ele começou a abrir os braços, magistralmente, erguendo a expressão de seu rosto enquanto chacoalhava os balões para todos e para si: a unidade festiva o acompanhava — as crianças e os velhos — sem dar um pio, e então ele pulou e flutuou e caiu sobre o mesmo lugar, ganindo rouco, intermitente, e estourou os balões de uma só vez (ah!) e arremeteu do bolso do macacão uma pistola, apontando-a: seus olhos esbranquiçados numa menina pŕoxima, que tinha nas mãos um prato com bolo salgado; e depois seus olhos risonhos deslizando por sobre a plateia com rostos arredondados. No entanto, hábil ele trouxe a pistola à própria têmpora e “pá!”, atirou assim mesmo com um grito seco produzido pela sua boca salivante. Cômica maquinação, iniciava-se um espetáculo em que riam uma parte dos adultos e dos velhos (e também logo começaram a rir uma parte das crianças); e comedida e paulatinamente todos riam do espetáculo, de suas palhaçadas, da memória dos balões vermelhos (estourados) e dos gestos bobos. Riam da iminência espetacular, bruxuleantes luzes crepusculares escorrendo risonhas das clarabóias e da ponta do calibre, chegando ao chacinado e cada vez mais umbroso e sem oxigênio salão — mais abafadiço lugar com holofotes no centro, com olhos trêmulos postos naquilo e todos rindo sem parar, rindo e (rindo?) do espetáculo.
Durante a faculdade de engenharia, Henrique foi tomado por certa pretensão literária, e desde essa época passou a ler mais assiduamente e a escrever com frequência, resultando em algumas dezenas de contos e um romance. Após formar-se, começou a trabalhar na área de inteligência artificial (o que continua fazendo ainda hoje). Não obstante, seu verdadeiro interesse paira sobre a literatura.