Vermelho
Os pingos de chuva, que pouco a pouco engrossavam com a iminente aproximação da tempestade, chocavam-se contra a janela de Sarah em um ritmo rápido e constante, como o pulsar de algum coração ancestral. Com uma mão apoiada no vidro, a mulher buscava aquela pequena onda de impacto em sua pele para distrair-se, dar a seu corpo algo a assimilar além do silêncio daquele apartamento. Nunca estivera em um lugar tão vazio.
Sarah era acostumada com o barulho, necessitava dele, e por isso incorporou-o em sua escolha de profissão. Como professora em uma grande universidade, ela a todo instante precisava dar aulas, conversar, tirar dúvidas, explicar, pesquisar, participar de reuniões, estava sempre em movimento, não conseguia ter a mente ociosa mesmo se quisesse. O resto de seu tempo era preenchido pelo namorado Frederico, um homem atencioso porém complicado. A história dos dois desde o início fora de uma intensidade tão grande a ponto de transbordar, como demonstravam os hematomas ainda frescos nos braços e rosto de Sarah. Há algum tempo a professora entendera que haviam três no relacionamento: ela, aquele por quem se apaixonara e um outro, desconhecido, filho de acessos de raiva e descontrole e que podia ser muito imprevisível. Por várias vezes Sarah tentara esquecer o estranho e concentrar-se nos momentos felizes, enterrar a própria vergonha e arrastar-se de volta aos braços dele como se nada tivesse acontecido, perdoando e esquecendo para manter a boa convivência.
Mas tudo havia acabado. O último “desentendimento” deixara marcas visíveis demais para esconder e perguntas que Sarah não queria responder. Por uma vez em dois anos, ela reunira forças para fazer algo por si mesma e fechar as cortinas daquele circo, uma decisão difícil, tornada ainda mais difícil pelo fato de Frederico não ter se oposto. A pronúncia das palavras “tudo bem” estilhaçou seu mundo de uma forma que não poderia prever e agora sentada perto da janela, com a noite e a tempestade se aproximando e um copo vazio de uísque na mão, Sarah não conseguia se reconhecer. Deveria haver liberdade ao dar um passo daqueles, algum alívio, mas cada canto do apartamento gritava ausência e ela se sentia tão vulnerável quanto se tivessem arrancado-lhe a pele dos ossos.
A lembrança desse emaranhado de misérias somada ao álcool sobrecarregou a mente de Sarah e a mulher começou a sentir a carne em seu braço pulsar, como se algo embaixo implorasse para sair, mas antes que ela pudesse pensar em libertá-lo com as lâminas escondidas no banheiro, um raio seguido do estrondo de um trovão acabou com a eletricidade do prédio, deixando tudo e todos ali vivendo na mais completa escuridão. Assustada com o barulho, Sarah derrubou o copo de uísque, quebrando-o em fragmentos pontiagudos. Ao tentar navegar pelos destroços, acabou pisando em um caco de vidro, deixando escorrer um longo filete de sangue até o corredor envolto em trevas.
A mulher, porém, mal percebeu o ferimento, pois a dor rapidamente abandonou seu corpo para dar lugar a um terrível estado de alerta. Ela ouvira o som de passos, passos fortes e claros vindos de lugar nenhum, como se estivessem espalhados por todo o apartamento, milhares de pés arrastando-se em sua direção. Sarah sentou-se no sofá da sala, segurando a cabeça entre as mãos, e tentou associar aquele barulho aos pingos da chuva torrencial do lado de fora, mas tornou-se impossível ignorá-lo ao sentir o peso de uma mão gélida tocar-lhe o pescoço.
Ao olhar para cima, a professora percebeu que não mais estava em sua residência: as paredes haviam se tornado muros de pedra, o teto parecia mais alto e prolongava-se em forma de ogiva, o ar era espesso e pesado, os vidros da janela metamorfosiaram-se em vitrais com cenas de martírio. A maior mudança de todas, porém, era a coḿpanhia; antes temerosa por solidão, Sarah foi tomada por um surdo pânico ao deparar-se com uma mulher parada em sua frente. Não havia nada de chocante em suas feições, porém algo nela parecia errado, muito errado, com aqueles longos cabelos ruivos que caíam sobre uma bata branca, o rosto alongado ornado de olhos verdes como fogo-grego.
Sarah a observou de baixo a cima, não ousando dizer uma palavra, mas quando seu olhar encontrou aquelas órbitas ardentes, um grito surgiu do fundo de sua garganta. Sem nenhuma explicação, uma adaga apareceu na mão da estranha e ela a usou para rasgar o próprio ventre, de um canto ao outro, enterrando-a na carne de maneira a exauri-la de todo sangue que ali havia e saía em jorros, atingindo Sarah. O toque de cada gota em seu corpo tinha um efeito singular: os hematomas deixados por Frederico começaram a queimar e abriram-se em chagas, deixando escorrer líquido quente por sua pele. Outros ferimentos surgiram em seguida, na verdade reapareceram nos mesmo lugares de lesões antigas: a pele no canto de seus lábios rasgou, um dos olhos inchou-se, ela sentiu o osso do braço esquerdo tornar-se pó dentro da carne.
A dor fez a professora cair no chão e a estranha ajoelhou-se ao lado dela, sussurrando palavras em uma língua desconhecida com uma expressão indecifrável no rosto. Assustada, Sarah repeliu a outra mulher e saiu correndo para o corredor que levava a seu quarto, ou pelo menos alguma versão dele, deixando um rastro do sangue das duas atrás de si. Para sua surpresa, após o número de passos habitual entre a sala e a alcova, ela encontrou uma porta, porém o cômodo do outro lado não parecia com nada que lhe pertencia.
O quarto poderia ser parte de uma das belas casas dos romances de José de Alencar por sua decoração com móveis de madeira esculpida, um grande relógio de ouro e uma cama coberta por espessas cortinas bordadas, mas a mesma atmosfera pesada do sinistro claustro que se tornara a sala davam-lhe um ar pungente de decrepitude. Olhando ao redor, Sarah percebeu que suas feridas haviam desaparecido e perto da janela, um homem a observava enquanto um terrível som sufocante saía de seu peito. Ao chegar perto dele, a professora encontrou os mesmos cabelos ruivos, rosto alongado e olhos esverdeados da mulher do primeiro cômodo.
Antes que Sarah pudesse perguntar o que acontecera, o desconhecido tirou do bolso uma navalha e, encarando-a fixamente com um último suspiro, deslizou-a pelos pulsos, rasgando a pele em feixes escarlates gotejando pouco a pouco. Tomada por uma sensação de asfixia, a mulher tentou segurá-lo em seus braços até perceber o sangue também vertendo-lhe das roupas. As cicatrizes auto-infligidas nos ombros e coxas de suas sessões com objetos cortantes, momentos que ela lutava para esconder, transformaram-se em ferimentos expostos e por impulso Sarah abraçou o próprio corpo, cobrindo a pele com os membros. O homem agonizante ao seu lado parecia ter esquecido a dor e utilizou o restante de suas forças para sussurrar-lhe uma única palavra: fatalidade.
Ao constatar a morte do desconhecido, a professora levantou do chão e arrastou-se até a porta, sem saber se o sangue deixado a cada passo era seu ou dele. Ao sair do cômodo, seus cortes mais uma vez se fecharam e o corredor a sua frente, escuro como uma boca aberta, abrigava mais uma sombra. A mulher, resignada, aproximou-se do espectro de braços abertos para receber novas chagas, mas as feições dele paralisaram seus passos. Ela encontrou os mesmos cabelos ruivos, rosto alongado e olhos verdes das outras aparições, porém dessa vez conseguiu reconhecê-los. O coração de Sarah esmoreceu ao perceber que estava diante de seu irmão Carlos, morto há muitos anos, porém sempre presente em seus pensamentos como a voz na cabeça de um louco.
Sarah lembrava do dia da morte de Carlos como se fosse sua própria, e de certa maneira havia sido. Os jornais da época noticiaram um massacre de arma de fogo realizado por um jovem de dezesseis anos que se suicidara logo em seguida, mas não podiam imaginar o que era viver em uma casa com ele, presenciar sua mente definhando, a agressividade crescendo, escutar as coisas ditas por alguém cujos demônios não conheciam o silêncio. Nos anos seguintes, as pessoas em volta de Sarah a observaram como uma tragédia prestes a acontecer: cada acesso de raiva, um potencial de violência, cada momento de melancolia, um terreno fértil para idéias impuras. Ela muitas vezes tivera pensamentos perturbadores, e temia o conhecimento das pessoas sobre aquela distorção essencial herdada por sua alma, uma deformidade que a impedira de encontrar o amor, de ter um relacionamento normal não apenas com um outro, mas também consigo mesma.
Agora olhando nos olhos do espectro, a professora sentiu todas aquelas coisas de uma vez só, e além. De repente Sarah não era atormentada apenas por suas próprias dores: ela passou a enxergar as atrocidades cometidas por e contra milhares de vidas ao longo dos séculos, homens e mulheres de cabelos ruivos, rosto alongado e olhos verdes cheios de ódio, consumidos por impulsos de destruição contra si e o resto do mundo, esmagando-se uns aos outros em um ciclo alimentado por sangue derramado que ninguém sabia como parar. Uma sensação estranha infundiu as veias de Sarah, pesadas, cheias, pulsantes, como se uma legião de almas aprisionadas gritasse de desespero.
Horas depois, a professora foi acordada por uma ligação. O celular sobre o qual dormira toda uma noite no sofá acusava uma dúzia de chamadas de Frederico e algumas longas mensagens pedindo perdão. Sarah levou as mãos ao rosto alongado coberto de suor, sentiu a área roxa ainda sensível em volta de seus olhos esverdeados, pegou uma mecha ruiva de seus cabelos e girou-a entre os dedos, como se refletisse. Não precisava ser daquele jeito, não poderia ser. Mas e se as estrelas sempre se encontrassem alinhadas para sua destruição? E se estivesse condenada a reviver e repetir toda aquela dor?
Sarah guardou o aparelho e dirigiu-se até a entrada. Ela saiu, deixando para trás o apartamento vazio, cujo único resquício de vida era o líquido vermelho de seu sangue ainda pingando dos estilhaços de vidro quebrado.
Raísa Nogueira Medeiros é escritora e acadêmica de Direito. Nascida em Manaus, Amazonas, é autora do romance “As Veredas de Genevive”, publicado aos 14 anos de idade, e participa de diversas antologias de contos, com ênfase nos gêneros do terror e da ficção histórica.
@raisanogueiramedeiros