Apartamento 203
Quase cinco meses depois da pandemia que tomara conta do mundo, as coisas pareciam querer se normalizar. Como dizer o que era normal depois de tudo? Questionava-me o tempo todo. Enfim, segunda-feira, as atividades na redação do jornal voltariam. Havia ficado em home-office, já que pertencia ao grupo de risco. Como seria respirar juntos novamente? Será que aquele vírus tão insistente tinha realmente dado um alívio? Não sabia responder.
Talvez pela ansiedade, acordei duas horas mais cedo do que o horário habitual. Verifiquei as matérias já organizadas, o material que utilizaria, li o capítulo de um livro, alonguei-me, mas a hora não passava, aliás, queria que passasse?
Tomei café pensando no álcool em gel e suspirei imaginando como respiraria fora de casa. Finalmente a hora de sair chegava. Olhei imóvel os últimos cinco minutos do relógio. Peguei a mochila, dei um afago no gato, verifiquei se o gás estava fechado e abri a porta. O ar monopolizado do corredor do prédio vinha ao meu encontro com uma força estúpida. Fiquei paralisada, o corpo não respondia ao simples comando do “vamos”. O gato se enrolava em minhas pernas que nesse momento tremia, uma lágrima involuntária desceu pelo meu rosto. O cérebro novamente dava o comando: “vamos mulher!”. Nada. Meu corpo permanecia imóvel, quase estático se não fosse pela tremedeira. Tentei fechar a porta, mas não conseguia. O gato aproveitara a porta aberta e desfilava pelo corredor, sumindo de minhas vistas. Queria pegá-lo, mas, continuava imóvel sem o corpo obedecer a minha mente. Gritei, a voz não saía. Tentei me jogar no chão, precisava escapar do estado catatônico, mas toda ação que tentava era em vão. Permaneci em pé, frente a uma porta aberta com um vento estupidamente forte me açoitando o rosto, tremendo e conversando com minha mente.
O celular tocava dentro da bolsa, provavelmente o jornal querendo saber onde eu estava. Era segunda-feira, Dinara, a moça da limpeza, viria somente na terça-feira. Não havia vizinho na frente e nos outros dois apartamentos do andar moravam pessoas idosas que saíam raramente.
E se alguém encontrasse meu gato? Procurariam pelo dono e certamente me encontrariam. Acreditava que estava pensando de forma muito dramática, logo meu corpo me obedeceria. Uma hora talvez se tenha passado, não sabia ao certo dizer, pois, nem virar a cabeça para olhar o relógio pendurado na parede conseguia. Tremia, mas agora era de frio. O gato não aparecia e o silêncio era quase absoluto se não fosse pelo vento. Minha única visão era a porta do apartamento da frente e o número pendurado, o 203. Tentava criar significados para aqueles números, imaginava cores diferentes para aquela porta e criticava o modelo do tapete de entrada. Horas se passaram, enfim um miado. O esboço de alívio quase era desenhado em meu rosto, alguém encontrara meu gato. A ansiedade percorria todo meu corpo esperando alguém aparecer na minha frente para poder ajudar. Ninguém apareceu, somente o gato que adentrava o apartamento miando insistentemente expressando sua fome.
Lágrimas novamente desciam pelo meu rosto, estava presa dentro do meu próprio corpo. Fechei os olhos, o cansaço era tamanho, a fome uma companheira e a vontade de ir ao banheiro aumentava. Cochilei em pé, sem cair, sem perceber. O corpo agia por vontade própria.
O dia começava a escurecer. Forcei um grito, mas a voz não saía. Pensava: “Será esse meu fim último? Ficar presa num eu que não me obedece?”. O gato dormia levemente no sofá.
A noite já era escura, o gato saía mais uma vez, aparentemente se beneficiando da desgraça alheia. E se fosse um cachorro? O silêncio do prédio era ensurdecedor, nunca havia percebido o quão aquele espaço era ausente de pessoas. Ninguém sentiria minha falta. Comecei a me questionar se morar só era vantajoso. Se tivesse alguém já teria sido encontrada e não estaria naquela situação. O desespero tomava conta de mim, fechei os olhos e lembrei da reza que minha avó havia ensinado quando eu ainda era pequena. Repeti inúmeras vezes e a calma se fez. Pelo silêncio da rua, a madrugada se adentrava, a calça molhada de urina me congelava ainda mais, o gato voltava de mais um passeio e cravava as unhas em minhas pernas.
Então era isso? Morreria assim? Sem escolha, presa dentro do próprio corpo, isolada num apartamento de um prédio triste e solitário? Seria este meu ato final? Fechei os olhos, conformada com a situação.
— Dona Mariana?
Abri os olhos e o dia já raiava firme. Era Dinara, o alívio se fez dentro de mim.
— Dona Mariana, está tudo bem?
Não conseguia responder, continuava ali parada. Será que ela não via o pavor em meu rosto? O gato miando com fome? As folhas espalhadas pelo vento? Não, não estava nada bem, mas não conseguia responder. Forcei as lágrimas como um sinal para ela enxergar meu desespero, mas ela se afastou pensando que estava atrapalhando. Por dentro fui me despedaçando em terror.
— Quinta-feira limpo esta parte, está tudo organizado. Dizia Dinara enquanto se afastava.
Na bolsa ainda pendurada em meus ombros, o celular tocava insistentemente. O gato miava em cima da mesa. Na rua a agitação matutina começava seu roteiro cotidiano.
Olhei para frente, o sol reluzia no 203 e era terça-feira.
Vanessa Aparecida da Conceição é socióloga formada pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), escritora, professora e revisora de textos.
Atua principalmente nas áreas de Livro, Leitura e Literatura, desenvolvendo trabalhos sociais, culturais e educacionais. Além disso, é capoeirista há 15 anos e mãe.
@anima.atemporal