Guarda-chuva perdido
O trajeto é curto? Na maioria das vezes. É, hoje ele está longo, e me sinto menor e mais frágil do que sou. Frio e chuva, pior combinação não há. A água entra no tênis, e meus pés a minutos estavam limpos, a minutos eu havia secado detalhadamente no meio de cada um dos dedos. Agora, a água me invade.
O guarda-chuva bamboleia bambo, e eu começo a bailar uma musiquinha inventada, tentando fingir não estar com raiva. Tem necessidade desta mulher abrir a porta do carro justo agora? Uma calçada estreita, e eu que já estou encolhido me minimizo. A musiquinha não ajuda mais, e eu me sinto no direito de dizer em voz alta: sério isso?
Depois de perceber que fui ouvido, me pergunto: qual a necessidade de ter feito isso? O sinal fecha. A água me invade novamente. Ele poderia ter deixado eu passar, ele está dentro do carro e eu que estou me molhando, mas ele é importante demais pra se importar. O que vem em seguida eu faço questão de atropelar. Se quiser, passe por cima. Ele não é louco!
Chego do outro lado e paro para comprar pão. Porque o pão acaba o tempo todo, imagine para quem não tem pão pra acabar? Fecho o guarda-chuva para entrar no pequeno mercado de marca estrangeira e pronúncia duvidosa, que invade a cidade na mais silenciosa cara de pau, e a água me invade.
Cheguei. Puts, ela chegou. Eu marquei 14h30 e ainda são 14h. Eu só queria pegar pão. Qual deles eu pego? O integral ou o de fermentação natural? Tanto faz, é tudo de mentira. E no fim, os abdominais não vão me salvar. Eles nunca me salvam.
Eu já estou chegando. Aviso com ódio e um emoji sorrindo. Onde eu aprendi a ser tão falso assim? Não me lembro. É no débito. No débito. DÉ-BI-TO. Lembrei, aprendi na cidade. Pego o pão e até abrir o guarda-chuva, a água me invade.
Ela avisa que parou numa livraria perto do café onde marcamos, eu acabei de chegar. Ela está com um sorriso radiante que contrasta com o cinza úmido da cidade. Nem “dá oi” direito, cavala e exibe o sorriso de cavalo. Mentira, o sorriso dela é bonito, minha amiga é linda e começa a falar da história do menino riquinho que vai dar aula na montanha do Tibet e lá aprende que ser remoto é ser humano. Eu vou parar no Tibet, também. Não porque gostei da história, gostei da frase que ela citou. A gente sorri como quem vai comprar o livro, mas ela interrompe com: vamos? Obrigado moça! A frase que a moça não queria ouvir. Ela queria que a gente comprasse o livro, mas a frase foi sincera.
Dois bobos correm na chuva em direção ao café que está a dois estabelecimentos ao lado. A água me invade, e desta vez no olho e na boca. Que nojo! Mas, que bom. Nossa conversa sempre é seguida de milhões de pequenos acontecimentos que ainda não foram compartilhados. Compartilhados de forma não linear. A empatia é bluetooth 5.0. Às vezes paro para admirá-la. Eu admiro meus amigos, são pessoas tão… Tão sei lá. Admiro quem me faz sair na chuva para tratar de projetos que talvez não darão certo. A esperança boba dos amigos é um copo de água, e eu estou com sede. A água me invade. O tempo passa voando e precisamos voar para o próximo compromisso da agenda. Até a próxima, se cuida, cala a boca, beijo, te amo, etc.
Subo a rua e a garoa passou. Meus pés que mais cedo estavam secos devem estar enrugados e antes que eu pensasse: “pelo menos não está chovendo”, a chuva volta. Mais fraca, mas volta. A água me invade. Desta vez eu deixo ela tomar o rumo que quiser. Vou me secar em breve. Mentira, vou tomar outro banho e refazer o ato de secar cada dedo, quero dormir sem essa frustração.
Cadê a chave? Meu Deus, já passou das 18h. Preciso estudar. Cadê o guarda-chuva? Perdi. É, mais uma vez. Eu esqueço o guarda-chuva por aí, às vezes. Na verdade, quase sempre. O “quase sempre” é uma grande farsa. O “quase” e o “sempre” nunca seriam vizinhos, mas “sempre” e “quase” sozinhos não explicam direito. ENFIM.
Já me acostumei a ir buscar, e sempre me surpreendo quando o encontro. Esquecer guarda-chuvas era algo frustrante antigamente. Mas agora, toda vez que esqueço devo ir atrás, e por onde passo encontro memórias. Porque para buscá-lo eu preciso me molhar de novo, e a água me invade — Me invade de histórias.
Vinícius Perobeli é roteirista e dramaturgo. Morador da periferia de São Paulo e apaixonado por poesia. Atualmente trabalha como criador de conteúdo audiovisual para web. Começou estudando teatro, mas sua primeira formação foi como bacharel em rádio e TV, depois especializou-se em roteiro. Está estudando na pós-graduação de Dramaturgia, e lançará seu primeiro livro de poesias este ano.
@insoniapoetica e @vinicius.perobeli