Um gesto
É sábado, cedo, na hora em que todos ainda estão tomando café, mas eles já estavam lá, bebendo sua cerveja. Apreciavam a vista e os passantes.
Eu fui um daqueles que passou, mas voltei, encantado pela cena digna de pintura, filme, e, por que não, um desenho meu. Havia uma mesa mais externa, perto da rua, onde eu poderia sentar e desenhar os personagens matinais do Lanche Panorâmico, em Botafogo.
Entrei e pedi um refrigerante para poder usar a mesa, mas achei que era estranho só pedir um refri e acrescentei um saquinho de amendoim caramelizado. Antes de começar o desenho para valer, tratei de rabiscar com linhas leves a cena geral. Imagina se algum daqueles personagens fosse embora? Além deles, vistosamente abancados com ares de que não iriam sair de lá tão cedo, haviam outros clientes, uma senhora que fazia do local um tipo de escritório, ligando, anotando etc., e um homem grande que chegou quando eu comecei a desenhar.
Tive bastante tempo para observar as coisas. Além das placas das promoções lá fora e os preços dos produtos organizados num cardápio alto, à vista de todos, havia também uma fileira de pacotes de azeitonas e um kit de pilhas, pregados “graciosamente” no caibro do teto. Na vitrine da frente, entre os parcos produtos que já estavam dispostos, pois ainda era cedo, havia o tradicional ovo colorido. Todos os ovos estavam pintados de amarelo, geralmente há também os rosas e azuis, mas nesse boteco não tinha.
A dupla trocava conversas, tudo num ritmo lento, já tinham lá seus 70 e tantos. Ela mais falante, ele calado, talvez um pouco surdo pois vi ela repetir algumas frases e traduzir notícias que vinham da TV instalada junto à porta do bar. Gostei de ver como bebiam sua cerveja, tomavam um gole e as duas mãos voltavam para baixo da mesa, sem ansiedade de subirem de novo. O copo ficava esperando, as mãos soltas entre as pernas, o tempo suspenso até o próximo gole distante. O funcionário vinha de vez em quando secar o molhado da mesa, arrumar os copos, completar ou trazer mais uma. Ela cumprimentava um e outro que passava - outra volta? Tá malhando? Oi João, acordou cedo? E assim por diante.
Por fim terminei o desenho que levei mais tempo que eu imaginava, estava mesmo gostando de ficar ali, mas precisava seguir para outras bandas. Tirei uma foto, juntei as coisas e fui pagar. O funcionário que me atendeu já era outro, talvez se fosse o mesmo que me serviu mais cedo, ia querer ver o que eu tanto rabiscava, mas não, só cobrou o refri e o amendoim. Fui saindo com a dúvida de mostrar ou não o desenho para o dois, pensei que talvez eles me olhassem curiosos, mas só tinham olhos para a rua e a cerveja.
Passei por eles reticente, dei uns quatro passos já indo embora, mas, como no começo de tudo, resolvi voltar.
Olha, eu desenhei vocês, falei tímido. Ela logo se identificou no desenho e apontou para ele. - Somos nós dois, aqui eu, aqui você, disse ela sorrindo! Ele, sem usar a voz, fez um gesto de passar a mão pela boca, e depois abrir e fechar os dedos. Havia gostado, e o sorriso doce confirmava. Mas um outro gesto que não era para mim, nem para meu desenho, quase passou desapercebido. Depois do elogio silencioso, enquanto nós conversávamos e ela comentava meus rabiscos, ele não retornou as mãos para aquele repouso constante que eu havia observado antes, mas estendeu o braço, e delicadamente colocou a mão sobre a perna dela.
Raro de Oliveira nasceu no Rio de Janeiro e reside em Curitiba desde 1991. É designer, ilustrador e urban sketcher. Em seus cadernos de desenho sempre há uma história, um paralelo entre o sketch e a crônica. Registra o cotidiano das pessoas, da cidade e também seus sentimentos. Foi finalista do Off-Flip 2021 na categoria crônica e vencedor do Concurso Lusófono de Trofa 2022, com um conto infantil.
@rarodeoliveira