Há um poema em cada leitor.
Único. Como esta noite de quase outono,
de folhas murmurantes. Este instante.
Um céu que não se repete,
já passou.
Escutar é lento.
É ouvir o silêncio,
o grão da voz,
o engasgo.
Escutar a falta
nos excessos,
o vazio nos objetos
acumulados,
o grito na garganta,
a amargura
na gargalhada.
Escutar-se é
ainda mais lento.
Eu tento.
Quando pinto minha boca de vermelho,
penso só em te seduzir.
Assim carmim, assim vermelhos,
os lábios que entreabro,
a olhar para ti...
E a dizer me ama me ama me ama,
esse miado de mulher no cio.
Decifra-me,
ou, dis-pli-cen-te-men-te,
com meus lábios vermelhos,
te devoro.
Poderia assobiar sempre que passasses.
Não sei. Não aprendi.
Estão cerzidos, na barra da minha saia,
os temores de minhas bisavós.
Queria sussurrar-te muitas noites de amor.
Não posso. Vela minha voz
o silêncio da espera
na sacada noturna de meus príncipes.
Guarda este baú, vazio, de enxoval,
a menina que repete em seus passos
o andar eterno de todas as mulheres.
Escancarei minha porta aos fantasmas.
Aos que rondam o mundo à noite,
aos que assombram os consultórios de psicanálise,
e ao que me espreitava sob a cama.
Infância. Terra de sombras.
Um dia é preciso voltar a ela,
a sua fantástica e terrível realidade,
e, simplesmente, dizer:
- BUUU!
O que era monstro,
apenas sombra do armário.
Fantasmas da insônia, do escuro,
do pensamento.
O ruído nas escadas?
Madeira velha que estala.
Mas este sentado no sofá?
Quem será?
Dois poemas fazem parte de meu livro Cartas que não escrevi, publicado em Porto Alegre, pela editora Casa Verde, outros são inéditos publicados apenas no facebook.
Poeta e jornalista, Maria Alice Bragança (Porto Alegre, RS) é graduada e mestre em Comunicação Social. Autora dos livros: Quarto em quadro, Cartas que não escrevi e Misterioso pássaro, além de poemas em antologias e revistas no Brasil, Cabo Verde, Chile, Espanha, México e Portugal. Participou de festivais e feiras virtuais na Argentina, Colômbia, EUA, Itália, México, Panamá, Portugal, Reino Unido e Uruguai. Seus poemas foram traduzidos para o aimará, espanhol, inglês e japonês.
@maria_alice_braganca