Vive naquela cidade
Um bruto boi carrancudo.
Apavora a molecada
O abestalhado chifrudo.
Nos fuzuês e furdunços
Perfura bocós jagunços
Com bafo, carniça e tudo.
Mas um retado cabrunco
Atiça o tição da fúria;
Se mundiça de bravura
Pra nos torar da lamúria.
Com o seu laço e peixeira
Fará o boi ter leseira
E estribará na luxúria.
A fofoca do valente
Corre como uma beleza:
Dona Céu conta pra Igreja,
Que diz pra Baroa Deza.
E o valente ora na missa
Para ungir essa premissa
E benzê-lo de destreza.
A multidão já se esgueira
No barranco ao sol de ouro.
O boi agiliza e já ranca
Uma chulapa de couro
Do valente abestalhado,
Que correu chocho, espritado,
Daquele diacho agouro.
Logo retorna o valente,
Laceia o boi na goela.
Dá nós cegos em um toco,
Mete sebo nas canela,
Mangando daquela joça
E lhe sovando uma coça
Na inhaca fuça e moela.
Enquanto malina o boi,
Se assusta com o estrebucho,
O sangue batido, o chifre
Esturricado no bucho.
Poxa, mas que baita enguiço!
Reza para Padin Ciço
Todo chocho, troncho e chucho.
A multidão se perturba,
Retorna ao luar prata,
Fofocando do valente
E da vidinha pacata.
E a Baroa diz pra Igreja
Pra que orem dessa peleja
Tão fubenta e insensata.
Temerão do boi seboso
Pela extensa eternidade.
Pois logo as suas histórias
Soarão pela cidade
Através de gerações,
Pesteando corações
Com brabo boi santidade.
O Boi
Falatórios pela cidade,
Boatos de um certo homem
De valente austeridade
Que era capaz de açoitar
O boi de músculos
Infames.
O cabrunco,
Chifrudo
Couro bruto
E branco:
O que, por um olhar,
Perturbava os santos.
Mas todas aquelas bobas falácias
Queimaram na boca.
O boi matou aquele "certo homem"
Em loucas,
Bruscas,
Poucas
E rubras
Chifradas.
E o medo do bicho ainda açoitava e pernoitava
naquela cidadezinha amaldiçoada.
Sempre preso naquele campo,
devorando palmas e juás,
o bicho se estressava com barangos,
— os enviados de Satanás —,
ao lhe tacarem caroços de jambo,
com violência voraz,
ferindo, rasgando o couro tenaz,
à mando do nosso
satânico capataz.
E eu consumia tudo em lágrimas.
Quando criança, a maldade do mundo assolava.
Mas atenuar lástimas com acordes de violas cálidas
não supria a justiça de quem chorava.
Do meu trabalho,
vigiando a porteira,
avistava o boi misérrimo,
próximo à ribanceira,
com olhar pirético,
consumido por bicheira.
Estava quase para morrer
o pobre bicho:
morrer de estresse
pelo bicho homem.
Arreganhei a porteira,
sem receio pelas
possíveis baboseiras
ditas pelo meu capataz.
Arreganhei a porteira,
e o boi Satanás,
descendo a ribanceira,
saiu, do curral, voraz,
derrubando tranqueiras.
E correu o boi valente.
Alegre e assustador.
Correu o boi sorridente
do seu dono malfeitor.
Correu o boi pelas águas,
purgando suas mágoas,
e encontrando a felicidade,
antes tão ansiada,
perdida pelas falácias
limítrofes, endiabradas
de uma cidadezinha amaldiçoada.
Parte de um livro intitulado "Ovos de Jabuti em Latas de Ferro".
Márlon nasceu em 2002, em Ituaçu-BA, pacata cidade da Chapada Diamantina, onde viveu sob mangueiras e rios. Desde pequeno era aluado e apaixonado por mitos, histórias e culturas, o que fez florescer sua paixão pela literatura. Como o desejo por novas experiências lhe motiva, já se aventurou como graduando de psicologia e professor. Atualmente estuda Medicina pela UESB, Jequié-BA, mas sempre arranja um tempo para rabiscar papéis com fantasias.
@alvesbritoalan